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eclética, plural e marxista-cultural

Ritos de índios, ritos de brancos 

Renée Nader e João Salaviza

Entrevista por Hugo Salustiano 

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Ihjãc, ao lado de Kôtô e da equipe do filme, falou em krahô para a plateia daquela exibição de Chuva é cantoria na aldeia dos mortos na 42ª Mostra Internacional de São Paulo. Traduzidas as palavras, soubemos que ele agradecia a nossa presença ali e que se impressionava: nós, brancos, éramos muitos. Na tarde daquele sábado, antes da sessão, eles haviam todos juntos visitado a Rua 25 de março.

 

O espanto de Ihjãc é certamente inverso ao que qualquer paulistano médio ou outro branco urbano poderia ter ao ver o que é mostrado dos krahô, iniciada a projeção. Sob a lua, a noite é dos sons dos animais, da cachoeira e de quem quer que esteja ali. Ihjãc acorda de um sonho e segue pela mata escura. À beira do lago, ouve a voz do espírito de seu pai. O pai diz que Ihjãc está se esquecendo de realizar seu ritual funerário. Então, pede que Ihjãc se junte a ele no lago. Ihjãc se recusa, e joga um pedaço de madeira na água. Em contato com a superfície, a madeira é consumida por chamas. Corte, e já é a manhã seguinte na aldeia de Pedra Branca. Kôtô, esposa de Ihjãc, precisa de um facão novo. Sua mãe diz que tem dívidas na cidade, e que a filha deve amolar o facão que já tem ali. As pessoas conversam, vão à roça, jogam futebol, cozinham.

 

Chuva é cantoria na aldeia dos mortos é uma docuficção dirigida por Renée Nader Messora e João Salaviza, rodado na aldeia krahô de Pedra Branca, estado do Tocantins. Os atores são os próprios indígenas que ali habitam. A produção ganhou vários prêmios nos festivais onde passou, incluindo o prêmio do júri da mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes de 2018, o prêmio especial do juri em Mar del Plata, direção e fotografia no Festival do Rio, Fotografia e melhor filme no Festival de Lima. O longa estreou no dia 18 de abril.

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Para saber como se deu o desenvolvimento da obra e qual a relação dos Krahô com o cinema, entrevistei os diretores por e-mail. As respostas foram dadas em conjunto por Renée Nader e João Salaviza. 

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Como surgiu a ideia do filme? O que é essa ideia de docuficção e por que filmá-lo assim?

 

Em 2010 fui convidada para filmar um Pàrcahàc [1] de uma grande liderança Krahô, o Aleixo Pohí. Passei quinze dias em duas aldeias diferentes, e quando voltei a São Paulo, sabia que tinha de regressar. Entre 2010 e 2015, realizei diversas experiências audiovisuais junto a um grupo de jovens da aldeia Pedra Branca, e conformamos uma espécie de coletivo de cinegrafistas, responsável pela produção de imagens e sons de festas tradicionais, cantigas, histórias e mitos que eram importantes para a comunidade. O Mentuwajê Guardiões da Cultura continua fazendo esse trabalho.

 

Um desses jovens, por volta de 2013, passava por um processo bastante parecido ao que acontece com o Ihjãc no Chuva: ele estava sob o efeito de um feitiço, e acreditava que, se permanecesse na aldeia, iria morrer. Também tinha 15 anos, também era casado e acabava de ter seu primeiro filho, mas o medo da morte o obrigou a mudar-se para Itacajá, onde acabou morando por cerca de um ano. Esse rapaz estava numa espécie de limbo, entre a modernidade e a tradição, entre a aldeia e a cidade, a vida e a morte. Essa história acabou sendo o "disparador" do Chuva, e essa ideia de uma vivência entre-mundos se manteve no filme. Acho que esse limbo é onde estão hoje muitos dos jovens, de diferentes aldeias e etnias. Queríamos imaginar e tentar perceber de que maneira a juventude indígena está lidando com suas questões mais íntimas, e quais as implicações desse "atropelo cultural" promovido pela sociedade envolvente não-indígena nas suas maneiras de lidar com essas questões. Somado a isso, tínhamos muita vontade de passar o tempo ali, convivendo com aquelas pessoas, participando da vida comunitária da aldeia. Decidimos fazer um filme.

 

Sabíamos que a realidade teria um peso determinante na ficção, desde o começo. Chegamos a essa forma num processo que consideramos muito mais intuitivo que racional. Conhecíamos bastante bem as pessoas que íamos filmar, então jamais cogitamos, por exemplo, trabalhar com um núcleo familiar que não fosse real. Não faria sentido nem para o Ihjãc, nem para nós. A escolha de Ihjãc como protagonista sempre implicou na escolha de todos seus familiares como potenciais atores no filme. É claro que isso trouxe uma fluidez à mise-en-scène que seria muito difícil conseguir de outra forma.

 

A escolha de filmar o Krate, que é um grande pajé na aldeia, também passa por aí. Não queríamos pedir que nenhum deles fizessem ou falassem coisas com as quais se sentissem desconfortáveis. Seria muito complicado pedir a alguém que "atuasse" como pajé.

 

A mesma coisa com a escolha dos nomes. Nos dois curtas-metragem que filmamos como forma de preparação para o Chuva, todas as personagens tinham seus nomes trocados. Isso acabava gerando uma enorme confusão, e vários planos tinham de ser refilmados por conta da dificuldade que eles tinham de assumir esses nomes como seus. Quando tinham de pronunciar o nome "fictício", geralmente se equivocavam e diziam o nome verdadeiro. Então antes de iniciar as filmagens, perguntamos ao Ihjãc e a Kôtô como eles gostariam de se chamar no filme. Essa pergunta se repetiu para cada um dos personagens. Todos quiseram manter seus nomes reais, com exceção do espírito do pai de Ihjãc. Tomamos essa decisão porque o pai dele está vivo, e não queríamos que houvesse nenhum tipo de confusão. Apesar do nosso cuidado, o pai do Ihjãc acabou ganhando o nomeapelido de mecarõ [2] depois do filme, e a comunidade não cansa de fazer essa brincadeira com ele.

 

Acho que cada sequência vai pendendo para a ficção ou o documental, mas sempre com um certo grau de "contaminação" de um pelo outro. Por exemplo, para construir o Pàrcahàc do filme, filmamos duas festas distintas, que aconteceram na aldeia durante as filmagens, em diferentes épocas do ano. O dispositivo cinematográfico nos permitiu transformar essas duas festas em uma, através da montagem, da correção de cor (as cores do Cerrado mudam drasticamente na estação seca e na estação chuvosa), da utilização do som... Jamais poderíamos "produzir" uma festa de Pàrcahàc, porque existe uma dinâmica na festa que dificilmente poderia ser forjada ou reconstituída. Como contraponto, podemos pensar na sequência do Posto Velho, onde apesar da mise-en-scène evidente, com os corpos filmados distribuindo-se pelo espaço das ruínas, de maneira nada aleatória — Ihjãc inclusive pendura uma rede no alto de uma árvore — a maneira de falar do Ipàr e o conteúdo de sua fala aproximam a cena ao registro documental.

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O número de ficções indígenas vem aumentando recentemente. Quais outras referências cinematográficas vocês tinham em mente durante a produção do filme?

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Temos algumas diferenças nos nossos gostos cinematográficos, mas Abbas Kiarostami é o realizador cuja obra admiramos com a mesma intensidade. Filmes como Close-Up, Trabalhos de Casa, O Sabor da Cereja, ou Dez nos comovem sempre e a memória dos seus filmes forma uma espécie de arquipélago de imagens que nos acompanha. Mas é difícil entender até que ponto essa admiração encantada de aprendizes se transporta para o nosso filme num nível tal que o possamos considerar uma referência.

 

O mesmo podemos dizer desse punhado de filmes brasileiros que nos fascinam, por questões distintas: Bicicletas de Nhanderu, As Hiper-Mulheres, Iracema, Martírio, ou Serras da Desordem. Temos também acompanhado alguma produção indígena mais recente e encontramos filmes que nos impactam por porem em causa todo o nosso aparato visual e narrativo, a própria construção fílmica da temporalidade, ou a forma como a montagem serpenteia a cada corte aquilo que a nossa condição de espectadores educados esperava.

 

Perguntam-nos com frequência em que lugar localizamos nosso filme no âmbito do dito cinema indígena, e se o nosso filme é ou não cinema indígena. A insistência nesta questão nos tem obrigado a pensar sobre ela e agora nos parece que a única resposta possível é assumir que não temos nenhuma legitimidade para definir que filmes são ou não “cinema indígena”. A definição, se por um algum motivo for útil, terá que ser pensada a partir de uma perspectiva indígena. Afirmamos que este filme é, isso sim, a materialização de um encontro, e que as imagens e sons traduzem essa relação. No entanto, por muito que lutemos contra nossos automatismos intelectuais e emocionais, parece-nos claro que é impossível descolonizar o olhar por decreto. O que não invalida que sigamos tentando pensar no cinema como uma forma de aproximação, de tradução e de reflexão.

 

Pouco tempo antes de iniciarmos os nove meses de filmagem, a luz elétrica chegou na aldeia. Com a eletricidade chegou também a televisão, e presenciamos o primeiro contato entre os Krahô e esse bombardeamento de imagens que chegou transportando todo o ideário predatório do capitalismo, e que agora se impunha na aldeia com suas violências narrativas, discursivas e visuais. É claro que os Krahô já tinham tido contato com a televisão antes nas suas idas ocasionais à cidade, ou quando ligavam um gerador a gasolina para assistir a um jogo de futebol, pegando o sinal aberto. Mas a luz elétrica trouxe uma novidade que foi a inclusão destas imagens no quotidiano. De um dia para o outro a televisão passou a estar sempre disponível. Nas primeiras semanas, a aldeia inteira assistiu ao Jornal Nacional, noite após noite, com entusiasmo e curiosidade. Mas logo alguns jovens começaram a questionar a ausência dos indígenas naquelas imagens, e foi surgindo a ideia de fazer um jornal com notícias da comunidade. Durante um mês e meio, os jovens saíram pela aldeia produzindo notícias, reportagens e entrevistas, se apropriando do modelo do Jornal Nacional. Durante a semana eles filmavam e a gente ajudava com a edição, preparando um episódio por semana que era projetado toda sexta-feira, num lençol, com as notícias da semana. Os assuntos e temáticas eram muito variados: eles tanto filmaram longas entrevistas com os mais velhos, contando mitos ou estórias antigas como acontecimentos pontuais: o torneio de futebol inter-aldeias com resumo das partidas ou alguma caçada no mato (o próprio Ihjãc filmou uma "reportagem" belíssima com sua família caçando um tamanduá). Para nós, acompanhar esse movimento também nos fez pensar no nosso lugar enquanto “caçadores-coletores” de imagens, num contexto de alteridade.
 


Como foi a negociação para fazer o filme e a recepção das gravações pela aldeia? Houve algum tipo de resistência por parte de uma parcela da aldeia?

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Acreditamos que todos esses anos passados na aldeia, trabalhando essencialmente com imagens, mas também nos envolvendo nas questões da comunidade — que nada tinham a ver com o cinema e que, de certa forma, eram fundamentais também para que o nosso trabalho pudesse ser realizado ali, de uma maneira que fizesse sentido para ambos, nós e eles — prepararam um terreno bastante fértil de cooperação e confiança mútua, por onde o Chuva pôde fluir sem grandes entraves. É claro que sempre tratamos de deixar muito claro qual era nosso objetivo, qual seria o papel do Ihjãc, como a comunidade poderia contribuir e o que eles poderiam esperar como contrapartida da nossa parte. Agora se tem algo que aprendemos nesse convívio com os Krahô, é que eles são os reis da negociação, e jamais conhecemos um povo que negocie melhor do que eles. Vivem em constantes operações de trocas entre si, e naturalmente quando a gente entra no jogo, passamos a fazer parte desses acordos. No começo, essa maneira de relacionar-se pode ser um tanto intimidante. Eu, por exemplo, demorei bastante tempo para livrar-me da sensação de que sempre estava devendo algo para alguém. Com o João [Salaviza, co-diretor] aconteceu o mesmo. Quando finalmente entendemos que essa dinâmica da troca, das dádivas e dívidas era parte estrutural das relações na aldeia, foi uma libertação. Aprendemos muito com isso, e esse aprendizado foi fundamental na hora de filmar.

 

Também houve uma negociação num nível espiritual, mediada pelo Krate, que é um respeitado wajaca (pajé). Mais ou menos no final do segundo mês de filmagem, quando finalmente definimos por onde se daria a relação de Ihjãc com esse mundo invisível, o Vitor, que fez o som do filme, começou a ficar um pouco apreensivo, pelo fato de estarmos tratando desse universo poderoso da feitiçaria, da pajelança, que tem implicações muito profundas na vida da comunidade. Pensamos que se o Ihjãc por ventura adoecesse, ou alguém de sua família, isso poderia ser atribuído ao filme. Então o Vítor sugeriu de consultarmos o Krate, junto com o Ihjãc, para entender até que ponto a nossa "brincadeira" — que era a maneira pela qual o pessoal na aldeia se referia as filmagens — não estava ofendendo ou provocando a "ordem" espiritual. O Vitor vive na Pedra Branca há muitos anos, fala a língua e é casado com uma mehi, a Amxykwyj, então a contribuição dele nessas questões era sempre muito valiosa. Finalmente consultamos o Krate, que por sua vez consultou os mecarõ, que nos deram o "aval" para continuar filmando. Krate nos disse que não nos preocupássemos, porque os espíritos sabiam muito bem que aquilo que fazíamos era apenas uma brincadeira.

 


Como foi o processo de construção do roteiro? Foi feito em parceria com os krahô envolvidos nas gravações? Qual o papel que eles desempenharam nesse processo?

 

Quando começamos a imaginar o filme, seguimos um processo muito livre e fluido. Começamos por escrever primeiro coisas que gostaríamos de filmar, que teríamos prazer em colocar em frente à câmera, e nesse processo as imagens que surgiram eram a mistura de coisas que vimos na aldeia, com outras que nos acompanham desde sempre, que são as nossas "referências fílmicas", por assim dizer. As deambulações das crianças de Kiarostami, misturadas aos mistérios da noite de lua cheia na floresta, uma moto barulhenta pelo meio, a intimidade de um casal... Esses desejos se transformaram, num primeiro momento, numa lista de coisas que não tinham relação nenhuma entre si, eram imagens de vontades.

 

Então veio a história de um rapaz Krahô, que era um dos jovens cinegrafistas Mentuwajê e que em 2014 passava por um processo um tanto parecido ao que atravessa Ihjãc no filme. Tínhamos uma relação bastante próxima com ele e vivemos esse processo bem de perto. Esse foi o disparador do roteiro do Chuva. Queríamos que o cinema nos servisse de pretexto para nos aproximar à intimidade de um jovem Krahô, seus dilemas e dificuldades ao ser indígena no Brasil contemporâneo.

 

Depois, com a escolha do Ihjãc como protagonista, o roteiro obviamente ganhou novas cores. Ele trouxe para o filme todo o seu núcleo familiar, sua casa e sua roça viraram locações, sua maneira de falar contaminou os diálogos quase toscos que havíamos escrito em português... Aliás, essa é uma questão muito interessante para se pensar, porque quando não se fala a língua em que se filma, acontece uma espécie de "trégua" nesse ato semi-bélico de apontar a câmera, e nós, diretores, perdemos o domínio daquilo que deveria ser nossa maior expressão de controle. Então o sujeito filmado passa a ter mais poder — ou no mínimo o mesmo poder — do sujeito que filma. Se por um lado o Ihjãc participava do nosso jogo, por outro ele também nos fazia mergulhar no jogo dele, do qual somente poderíamos emergir mais tarde, com uma tradução mais ou menos precisa da cena, geralmente na ilha de edição. Aí tivemos muitas surpresas, algumas que nos obrigaram a filmar mais, ou até mesmo refilmar, e outras que foram verdadeiros milagres.

 

As filmagens duraram nove meses, então na maioria dos dias sequer tirávamos a câmera da mala. Mas, em nove meses, muitas coisas acontecem numa aldeia, e é claro também que o filme vai se contaminando pela realidade, pelos pequenos ritos cotidianos, que terminaram por virar matéria fílmica. Por exemplo, na sequência da fogueira, quando o Ihjãc pergunta a seus parentes se alguém havia escutado os tiros de madrugada. Naquela sequência, havíamos pensado uma conversa mais corriqueira, mais banal, que daria lugar à interrupção da Kôto, dizendo que o filho não parava de chorar. O choro do Tepto era o assunto da sequência. Mas naquele dia, conversando com o Ihjãc durante o almoço, ele nos contou sobre as balas, sobre a placa furada e o político, e entendemos logo que aquele deveria ser o assunto da conversa. Então gostamos de pensar que nós não "inventamos" nada do que filmamos, mas que talvez as coisas não tenham acontecido exatamente da maneira como filmamos.



Você pode comentar um pouco sobre que forma tomava para eles a ideia de representar? Era totalmente estranha ou tinham alguma familiaridade, aproximando-a de outras práticas? Eles usavam palavras específicas em krahô para se referir à atuação?

 

O hôxwa é o palhaço cerimonial Krahô que surge na Festa da Batata, perto da colheita e da mudança de estação. Esta figura foi muito útil quando quisemos conversar com os “atores” sobre o sentido da representação, pois ele nos servia de exemplo. O hôxwa é, de alguma forma, um ator: ele domina uma espécie de arte performativa, que tem sua técnica, seus códigos, sua expressão corporal, e este atributo é atribuído apenas a alguns Krahô, através do seu nome. Mas conversamos também sobre a figura do cantor, ou sobre o próprio choro ritual: as festas criam contextos para que estas personagens apareçam e se revelem. Acreditamos que o cinema também pode criar este contexto e ser este lugar onde uma pessoa pode potenciar sua própria história utilizando a máscara da ficção. De alguma forma, o que fizemos foi reconstituir gestos, ações e palavras, e jogar com uma narrativa que o Ihjãc não viveu exatamente daquela forma (e isso lhe dá um distanciamento crítico), mas poderia ter vivido (e esta possibilidade o aproxima de uma suposta ideia de personagem). Aquilo que os atores profissionais chamam de técnica não é mais do que o domínio dos códigos físicos e verbais. É, digamos, o lado visível da representação. Nós não estamos interessados em psicologia de personagem, e intuimos que os Krahô também não. Então é como pedir a um bailarino que dance na cozinha; ou pedir a um pescador que lance a cana numa piscina: ambos conhecem os gestos, e conseguem resgatá-los num outro espaço. E, claro, há um lado extremamente lúdico neste processo. Os Krahô se referiam ao ato de filmar como a “brincadeira”.

 

Sentimos também que o resgate da palavra através dos diálogos era um processo semelhante ao resgate do gesto. É interessante pensar na palavra como uma extensão do nosso corpo, como um sopro, como um movimento do braço, e tentar que estas qualidades possam prevalecer sobre a semântica. De alguma forma, fomos obrigados a nos relacionar com os diálogos por esta via, por não entendermos a língua. Sacamos os temas das conversas, mas sem nenhuma precisão. Então, durante a filmagem íamos tateando o sentido das palavras. Claro que as sequências eram discutidas antes e todos propunham frases, sabíamos sobre que assunto eles iriam conversar, mas mesmo assim nada estava completamente definido, e nós acompanhávamos formas sonoras, o ritmo, a cadência, a melodia. E quando uma emoção era veiculada desta forma, sabíamos que a tradução só iria enriquecer mais ainda aquilo que estávamos escutando.

 


Quando pesquisei críticas do filme na internet, fiquei surpreso ao ver que o título internacional era Os mortos e os outros, o mesmo do clássico de 1978 escrito por Manuela Carneiro da Cunha, enquanto em português prevaleceu a fórmula — digamos, perspectivista — Chuva é cantoria na aldeia dos mortos. Qual a história do título original e por que foi adotado o título de Manuela Carneiro da Cunha internacionalmente?

 

Nunca conseguimos encontrar uma tradução que desse conta da poesia e da profundidade do título em português. A palavra cantoria, sempre que traduzida, se aproximava a uma ideia cristã do cântico ou do coro, que não é essencialmente a mesma coisa.

 

Então, terminamos por resgatar o título do livro da Manuela, que nos acompanhou sempre, desde a escritura do roteiro até a filmagem, e que funciona bastante bem quando traduzido. Além do mais, sentimos que Os mortos e os outros é um nome que carrega esse conceito tão fundamental no filme, que é a ideia do mecarõ, do duplo, desdobramento do corpo.

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Vocês aproximaram a produção do filme a rituais krahô. Poderia falar um pouco sobre essa comparação? Em que sentido fazer um filme é também um ritual?

 

Ambos trabalhamos antes em filmes feitos dentro de regimes de produção mais convencionais, com um equipe hierarquizada, uma estrutura corporativista onde estão muito bem definidas as funções de cada técnico e onde se dá uma mecanização dos modos de produção, que é importada do modelo industrial e que está muito presente na produção televisiva, publicitária e até em muito do cinema que é feito hoje um pouco por todo o lado. Nesse modelo, o filme e o trabalho se impõem sobre a vida de todo mundo, numa ruptura violenta com o cotidiano das pessoas que trabalham às vezes doze, dezesseis ou vinte horas consecutiva. E depois tudo acaba, a equipe se estilhaça subitamente com o fim da filmagem, e cada um segue o seu caminho.

 

Esta experiência prévia só nos podia ser útil para termos muito claro tudo o que não nos interessava no filme que queríamos fazer. Foi uma exigência da realidade, mas também uma decisão muito convicta, fazermos o filme sem ninguém de fora da aldeia além de nós dois.

 

Isto nos aproximou de uma forma artesanal, diríamos até doméstica, de fazer cinema. O cinema como um ofício, ou uma prática, que se dilui em tudo o que ia acontecendo nas nossas vidas, na do Ihjãc, Kôtô, do Vitor, do Xôtyc e de todos os outros que se envolveram mais diretamente neste processo.

 

De alguma forma, todos estávamos próximos mesmo quando não filmávamos, o que era a grande maioria do tempo. O cotidiano é isto: os banhos no rio, a comida, a roupa suja, as tarefas domésticas, as reuniões no pátio, a limpeza da câmera empoeirada, enfim, o conjunto de todos os pequenos afazeres somado às horas de ócio e convívio.

 

Quando saíamos para filmar, havia a sensação de que estávamos apenas intensificando o cotidiano, porque nenhuma das sequências era muito distante da vida do Ihjãc e da Kôtô. A vida e o cinema se diluíam. Mas, ao mesmo tempo, a filmagem era o momento onde um conjunto de gestos partilhados pareciam naturalizar um acontecimento excepcional. Abrir o tripé, posicionar a câmera, definir o enquadramento, ensaiar uma frase, repetir um movimento, treinar um gesto, esperar uma nuvem… O cinema feito dessa forma exige uma preparação, uma performance, e um conjunto de gestos ritualizados – que nada têm que ver com as ações mecanizadas feitas em outras produções. Este modo de fazer talvez nos aproxime da ideia de uma ficção etnográfica, onde o que nos interessa é uma ideia de verdade e não de verossimilhança. Os gestos e as palavras não são uma mera imitação da realidade, eles tendem para a ritualização, se somam à realidade. De alguma forma o ritual do Párcàhac opera também neste lugar: ele não substitui o luto de forma alegórica, mas ele o completa.

 

Apesar de estarmos há vários anos na aldeia, ainda hoje acontece de ficarmos confusos ou intrigados com a saturação de signos e movimentos durante alguma festa. “Por que tudo isto?”. Durante a filmagem, o Ihjãc também se questionava sobre ações que lhe pareciam indecifráveis: “Por que repetir este plano?”; “Por que filmar de dia uma cena que se passa de noite?”. Além do mais, o filme foi filmado em película, que era enviada mensalmente para o laboratório em São Paulo para ser revelado, e portanto só víamos o material muito tempo depois. Mas a nossa “brincadeira” foi durando, e talvez a nossa convicção no cinema os tenha levado a ver essa prática, com seus códigos e seus mistérios, como algo próximo a um ritual. Caso contrário, seria entendida como um trabalho abstrato, alienado, e dificilmente a comunidade aceitaria continuar brincando durante tantos meses. É a ritualização — e a coletivização do processo — o que permitiu naturalizar o ato de filmar, incorporando-o na vida da aldeia. Os rituais se encontraram. âˆŽ 

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Edição: Hugo Salustiano, Luiz Eduardo Freitas​

Fotos: Divulgação

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Renée Nader nasceu em São Paulo, em 1979. É formada em Direção de Fotografia pela Universidad del Cine, em Buenos Aires. Por 15 anos, trabalhou como assistente de direção no Brasil, Argentina e Portugal. Em 2009, Renée conheceu os Krahô e, desde então, ela trabalha com a comunidade, contribuindo na organização de um coletivo de jovens cinegrafistas. O foco do trabalho do grupo Mentuwajê Guardiões da Cultura é usar as ferramentas audiovisuais para o fortalecimento da identidade cultural e a autodeterminação da comunidade. Chuva é cantoria na aldeia dos mortos é seu primeiro longa-metragem.

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João Salaviza nasceu em Lisboa em 1984. Formado na ESTC, em Lisboa, e na Universidad del Cine, em Buenos Aires. Seu primeiro longa-metragem, Montanha, teve estreia mundial na Semana da Crítica do Festival de Veneza, em 2015. Veio na sequência de uma trilogia de curtas formada por Rafa (Berlinale Golden
Bear 2012), Arena (Palme d’Or no Festival de Cannes 2009) e Cerro Negro (Rotterdam em 2012). Recentemente voltou ao Festival de Berlim com os curtas
Altas cidades deossadas e Russa (co-dirigido com Ricardo Alves Jr). Chuva é
seu segundo longa.

[2] N.E.: Mecarõ é termo de difícil tradução. Assim o discute Manuela Carneiro da Cunha (1978, p. 10-11): “Um segundo princípio vital [dos Krahô, além do ‘sopro vital’] é o karõ (no plural mekarõ). Habita o corpo, embora se ausente nos sonhos e nas doenças; sobrevive ao homem, e é ele quem vai se estabelecer entre os mortos e lá levar uma existência insípida e diminuída. Talvez por isto karõ conte entre outros sentidos o de ‘morto’, que lhe é o mais usual quando usado na forma coletiva (mekarõ) [...] O significado de karõ, no entanto, parece ser bem mais amplo: o termo abrange entre seus denotata a fotografia, o reflexo, toda ‘imagem do corpo’ [...] Assim, poderíamos traduzir talvez mais apropriadamente karõ por ‘duplo’ [...] Na realidade, em sua essência, o duplo é [...] algo profundamente diferente de uma imagem: é o que remete ao objeto sem no entanto se confundir com ele”.

[1] N.E.: Rito de fim de luto realizado pelos Krahô. Ver, por exemplo, o capítulo IV de Os mortos e os outros (1978) de Manuela Carneiro da Cunha.

Âncora 1
Âncora 2
Chuva é cantoria na aldeia dos mortos (2019)
Chuva é cantoria na aldeia dos mortos (2019)
Chuva é cantoria na aldeia dos mortos (2019)
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Hugo Salustiano é mestrando em Antropologia Social pela USP. Estuda povos Guarani.

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