A pandemia é uma guerra?
Antonio Kerstenetzky
[1] Devo esse exemplo – bem como partes essenciais do modo como lido com as funções das metáforas na razão humana – ao livro clássico dos filósofos americanos George Lakoff e Mark Johnson, Metaphors We Live By (London: The University of Chicago Press, 2003).
[2] Para um bom histórico do uso político da metáfora da guerra, ver Hartmann-Mahmud, L. (2002) War as Metaphor. Peace Review: A Journal of Social Justice 14:4,
pp. 427-432.
[3] Ver também Flusberg, S.J. et al (2018), War metaphors in public discourse. Metaphor and Symbol 33:1, pp. 1-18.
[4] Van Creveld, M. (1991). The Transformation of War. Nova York: The Free Press, p. 45.
[5] O que é vividamente exposto no livro de Svetlana Aliexievich (2016) A guerra não tem rosto de mulher. São Paulo: Companhia das Letras.
[6] Cf. Van Creveld, op.cit., e também Hartmann-Mahmud, op.cit.
[7] Cf. Flusberg et al, op.cit.
[8] Ver Childress, J.F. (2001), “The War Metaphor in Public Policy: Some Moral Reflections”, in J.C. Ficarrotta (ed.), The Leader’s Imperative: Ethics, Integrity and Responsibility. West Lafayette: Purdue University Press, pp. 181-197.
[9] Informações novas sobre isso surgem o tempo todo; mais recentemente, alguns estudos sugerem uma taxa de sucesso superior a 50% (ainda assustadora, mas certamente justificativa da escolha de usar o respirador). Ver Hamilton, J. (2020, 15 de maio). New Evidence Suggests COVID-19 Patients On Ventilators Usually Survive. NPR. https://www.npr.org/sections/health-shots/2020/05/15/856768020/new-evidence-suggests-covid-19-patients-on-ventilators-usually-survive
[10] A expressão de é de Giovanni Del Missier ((2020). Overwhelmed by the virus: the issue of extreme triage. CCR. Disponível em https://www.cssr.news/2020/03/overwhelmed-by-the-virus-the-issue-of-extreme-triage/ )
Sem dúvida, é impossível pensar sem metáforas. Mas isso não impede que haja algumas metáforas que seria bom evitar, ou tentar retirar de circulação.
Susan Sontag, A AIDS e suas metáforas
Usar palavras para explicar o mundo é uma atividade metafórica: toma-se uma coisa (o ‘mundo’) por outra (a ‘palavra’). Implicitamente, espera-se a troca de algo incognoscível, um amontoado de sensações, por algo (aparentemente) familiar, os blocos que usamos para criar estruturas com sentido. Graças a essa operação, tão cotidiana quanto invisível, sentimo-nos capazes de nos orientar diante da multiplicidade que nos envelopa. Essas substituições, no entanto, não são simples. O termo que se usa será sempre mais restrito do que o recorte do mundo que aponta; isto é, o que torna o mundo cognoscível também o faz aparecer para nós como mais restrito (sem a restrição, aliás, não haveria sentido). Ao mesmo tempo, a substituição implica uma adição – quando se toma o mundo pela palavra, ele se contamina com outros tipos de usos que essa palavra tem.
Com isso, as metáforas que usamos para nos referirmos ao mundo têm uma relação de intercâmbio entre si. Algumas metáforas, aliás, ganham proeminência em relação às outras, regulando seu uso. Quando percebemos pessoas que falam animadamente sobre uma questão, por exemplo, apontamos para isso e dizemos ‘discussão’. O modo como nos referimos às discussões, no entanto, deixa claro que essa metáfora é regulada por uma outra, a da guerra. Assim dizemos que os participantes ‘têm uma estratégia’, ‘defenderam bem suas posições’, ou ‘atacaram as fragilidades’ do argumento adversário [1]. Em outros termos, para compreender o mundo e falar sobre ele, trocamos metáforas por metáforas, criando ‘super-metáforas’ como ‘discussão é guerra’.
Diante da dificuldade de lidar com o fenômeno que nos últimos meses transformou o modo como a humanidade se relaciona com o planeta (que chamamos ‘pandemia’), grande parte da população mundial encontrou um conforto epistêmico com o uso de uma super-metáfora: ‘a pandemia do novo coronavírus é uma guerra’. Essa metáfora tem, em especial, grande circulação na política, fornecendo estofo a um discurso convincente para a criação de coalizões que incorporam todo o espectro político, dando aos governos mais liberdade para levar a cabo políticas de ‘combate’ à doença e, ao menos teoricamente, de estímulo à economia e proteção social. Esse discurso possibilitou, assim, a centralização do poder político e, em muitos casos, a retirada de amarras democráticas desenhadas para limitar a autoridade dos governantes [2]. Dentre os líderes que usaram a metáfora, com maior ou menor efeito, estão Emmanoel Macron, Viktor Orbán, Benjamin Netanyahu, Donald Trump, Xi Jinping, Rodrigo Duterte, além da trinca de ministros da saúde brasileiros que já ‘comandaram’ o desastrado enfrentamento do vírus no país – o mais recente dos quais é um general.
A metáfora, é claro, não é útil apenas para os governantes; sua eficácia é decorrente da capacidade de suprir necessidades cognitivas e de regular o compasso moral da população. Em outros termos, como outras metáforas usadas na política, a pandemia-é-guerra deve seu sucesso comunicativo a dois fatores. Em primeiro lugar, parece tornar o que está ocorrendo mais compreensível, mapeando a pandemia em um fenômeno recorrente e próximo da experiência da maioria da humanidade (neste caso, a guerra). Nesse sentido, a metáfora potencialmente auxilia seus usuários a imaginar as soluções que consideram plausíveis e desejáveis. Em segundo lugar, aceitar a ideia de que a pandemia-é-guerra significa incorporar certas posturas morais e emoções em reação a eventos que marcam a pandemia e as respostas dos governos [3].
1.
Não está implícito, na metáfora, qualquer tipo de guerra. Certamente não estamos diante de algo semelhante a uma guerrilha, guerra de trincheira, ou cruzada. O que os usuários da metáfora parecem ter em mente é a ‘guerra total’, “uma luta nacional pela sobrevivência em que não há restrições” [4], proposta pelo general alemão (e ditador de facto da Alemanha nos últimos anos da Primeira Guerra) Erich Ludendorff em 1935 como o futuro da guerra. Suas previsões, em grande medida, se concretizaram: durante a Segunda Guerra Mundial, os principais combatentes converteram a totalidade de seus corpos sociais em instrumentos do esforço de guerra. Todos os homens jovens eram potenciais soldados (frequentemente, mulheres também [5]); todas as mulheres podiam fabricar armas.
Pensar nos moldes de uma guerra total tem como principal efeito cognitivo iluminar o caráter existencial da ameaça com a qual estamos lidando, além do altíssimo grau de mobilização necessário para a debelar. Nesse sentido, esse recurso retórico tem um efeito explicativo positivo, levando à percepção tanto da grandeza dos riscos envolvidos quanto do caráter coletivo de uma possível solução. Todas as ações recomendadas pelos governos em relação à pandemia ganham um aspecto ‘tático’, sendo compreensíveis como necessárias para o sucesso das escolhas tomadas pelos comandantes para que a guerra seja vencida. Nas circunstâncias atuais, aliás, torna-se mais simples assimilar e seguir a estratégia escolhida do que geralmente é o caso em uma guerra real: sendo o inimigo irracional, a estratégia e seus pressupostos podem ser amplamente divulgados. Assim, praticar o isolamento social (o que é requisitado da população de modo geral) pode ser enquadrado como contribuição para o sucesso de uma das táticas utilizadas no combate.
Outro aspecto da resposta à pandemia tornado vívido pela noção que a pandemia-é-guerra é a transformação que um governo deve sofrer para que o combate seja eficiente. Como numa guerra total, os governos foram convertidos em agências com um único objetivo, a ‘vitória’. Em uma guerra total, os tesouros nacionais são transformados em máquinas de imprimir dinheiro para garantir o objetivo; os ministérios das relações exteriores, em empreitadas para obter aliados [6]. “Imprimir dinheiro” foi textualmente a sugestão do ex-presidente do Banco Central (e, como ministro da Fazenda de Temer, o pai do Teto de Gastos) Henrique Meirelles, ecoando falas de diversos ministros de outros países; e a diplomacia mundial se tornou um elaborado jogo de troca de respiradores mecânicos e máscaras (além de acusações de responsabilidade pelo alastramento do vírus).
Além de sua capacidade de ilustrar essas duas características, a popularização da metáfora pode ser explicada pela sua clareza [7]. A guerra, além de fenômeno recorrente, é usada como metáfora para descrever uma série de políticas governamentais (como a ‘guerra às drogas’, a ‘guerra ao terror’, a ‘guerra à pobreza’, ainda que essas guerras sejam mais comparáveis a ‘cruzadas’ do que a guerras totais). Qualquer metáfora alternativa, mesmo se mais precisa, provavelmente seria complexa demais para ganhar a mesma circulação.
Pelo menos um aspecto essencial da guerra, no entanto, está ausente no cenário atual – está ausente, aliás, da maior parte dos fenômenos descritos metaforicamente como guerras: não há nenhuma clareza sobre como será seu fim. Uma guerra total termina quando a paz é declarada, através de uma rendição, armistício ou tratado. Dada a natureza do ‘inimigo’ com o qual estamos lutando (e do mistério que ainda a envolve), não temos ideia de como a pandemia acabará. Os fins que podemos entrever (desenvolvimento de uma vacina ou tratamento, possível mutação que torne o coronavírus menos agressivo) não são decorrentes da estratégia desenvolvida pelo ‘comando’, que na verdade está destinada à contenção de danos. A expectativa de uma ‘vitória’, neste caso, obnubila as preparações que devem ser feitas para o futuro. É possível que uma das principais responsabilidades do governo no futuro seja, pelo contrário, traçar planos de convivência com o vírus, que pode ir e voltar nos próximos anos, ocasionando a necessidade de novos períodos de confinamento da população.
Também em uma guerra total o trabalho de cientistas pode ter papel decisivo, mas nas guerras essa é uma de várias avenidas possíveis para a vitória. No caso da pandemia, pelo contrário, dependemos exclusivamente da pesquisa longe do campo de batalha, ou da sorte, para evitar que a esmagadora maioria da população seja eventualmente contaminada (o que ocorrerá se o fim da pandemia se der graças à aquisição da ‘imunidade de rebanho’, algo que pode demorar anos e custar muitas vidas). Se for verdade que a guerra é a extensão da política através de outros meios, nesse caso, pelo contrário, a ação do governo é em parte a extensão da ciência. Não há espaço para a criatividade ou surpresa por parte dos ‘generais’. Na medida em que cuida da saúde da população, a atuação do governo não pode contradizer o que for consensual entre os especialistas.
Outro aspecto essencial das guerras e ausente na pandemia tem a ver com o fato de sempre haver, na guerra, a possibilidade de o comando ‘escolher’ entre a luta e a paz. Mesmo a rendição, por mais catastrófica que seja, envolve a negociação com o inimigo, algo que neste caso é obviamente impossível (até porque ‘inimigo’ não descreve bem o novo coronavírus, um organismo sobre o qual sequer há consenso se é um ser vivo). Não está facultada à autoridade central a possibilidade de rendição, algo vividamente exemplificado pela inação do governo brasileiro. Enquanto pessoas ficarem doentes, elas vão desembarcar nos hospitais – instituições que preexistem à ‘guerra’ – onde, por direito humano, devem ser tratadas. Nesse sentido, o dever do governo, na pandemia, é exatamente o mesmo que em tempos de normalidade (e nesse sentido sua ‘transformação’ é bem mais limitada do que aconteceria numa guerra total): garantir a existência e o funcionamento de uma rede de proteção disponível àqueles que não têm como cuidar de si mesmos. O governo brasileiro, que antes da pandemia exercia essa função apenas minimamente, parece ter resolvido atuar como um anti-governo: além de destroçar a rede de proteção social, joga a população no abismo. Essa postura não é descritível como ‘rendição’; cabe melhor ‘crime contra a humanidade’.
Um governo que cumpre com suas verdadeiras responsabilidades ainda deve atuar de forma preventiva – uma atribuição pouco enfatizada pelo vocabulário militar –, mesmo se a escala dessa atuação foi repentinamente aumentada. Um excesso de preparação pode aumentar as chances de haver uma guerra real: o poder do próprio arsenal dá confiança a um governante sobre sua capacidade de atacar e defender, e quanto mais preparados estiverem os beligerantes, maior e mais destrutivo será o conflito. Nas pandemias, dá-se o contrário: quanto mais preparado estiver um governo, menos dano sofrerá a população.
Habitualmente, para a rede de proteção funcionar, são necessárias proatividade e imaginação dos gestores públicos, que devem ser capazes de se antecipar aos novos riscos aos quais seus cidadãos estão sendo constantemente submetidos. Durante a pandemia, mudam apenas a natureza e a urgência desses mesmos riscos (e dos investimentos necessários para os amortecer), tornadas subitamente cristalinas, até para um conservador como Henrique Meirelles. São necessárias garantias em dinheiro para evitar que o desemprego ou o subemprego leve à penúria; atuação do governo através da assunção dos custos das folhas salariais junto às empresas para evitar falências, empréstimos ou compra de participação; e um investimento maciço no sistema de saúde pública.
A existência prévia de instituições capazes de colocar essas políticas em curso, é claro, torna muito mais simples a articulação das respostas agora necessárias: o sucesso da contenção de danos (tanto sanitários quanto econômicos) de cada país está diretamente relacionado à existência prévia de instituições destinadas à proteção social. Em um país que já contava com um sistema de seguro-desemprego robusto e generoso; um amplo, efetivo e justo mecanismo de negociação entre patrões, empregados e governo; e um sistema público de saúde adequadamente financiado, pouca inovação legislativa (além de pouco esforço argumentativo) é necessária para que o governo evite demissões e falências, faça chegar dinheiro aos trabalhadores cujos empregos não pôde garantir, imponha o isolamento social e garanta o melhor tratamento possível aos doentes. No caso da Dinamarca, a existência de instituições desse tipo criou condições para a rápida aprovação de um esquema de garantia de manutenção dos empregos e pagamento de salários (assumidos pelo Tesouro), e o financiamento adequado da resposta à pandemia nos hospitais públicos. Enquanto isso, nos Estados Unidos, um país rico sem um estado do bem-estar robusto, onde não há saúde pública, o frágil e pouco generoso sistema de auxílio-desemprego sequer consegue dar conta da demanda de novos pedidos; não há direito trabalhista a licença médica; e os custos de hospitalização pelo coronavírus estão levando as pessoas à falência.
No caso brasileiro, a crise do coronavírus acentuou problemas críticos. Há um histórico subfinanciamento do sistema de saúde pública, tornado dramático pelo teto de gastos promulgado em 2016, defendido pelo atual governo. A reforma trabalhista do mesmo ano levou a uma pulverização dos tipos de contrato de trabalho, com a criação de regimes trabalhistas em que o empregador não precisa garantir nenhuma jornada ou salário ao empregado – esses regimes, aliás, sequer foram contemplados pelo tímido pacote de auxílio já aprovado pelo Congresso e sancionado pela Presidência. O enfraquecimento dos sindicatos pela reforma reduziu ainda mais a capacidade de os trabalhadores se fazerem ouvidos em tempos de crise. Com isso, tornou-se mais difícil à presidência da República, mesmo se desejasse, encontrar interlocutores capazes de expor as dificuldades pelas quais passam grande parte das famílias brasileiras. O fato de o Bolsa Família não ser um direito das pessoas em pobreza extrema possibilitou ao governo de extrema direita de Bolsonaro não atender os pedidos de mais de cinco milhões de brasileiros pelo pagamento de míseros quarenta reais mensais per capita, antes mesmo de a epidemia chegar ao país. A fragilidade de nosso sistema de proteção social e de saúde pública, aliadas à falta de vontade política do atual governo são, assim, fatores determinantes para a gravidade da crise pela qual passamos.
A existência de um estado do bem-estar capaz de amortecer os efeitos desse tipo de crise não é exclusivo a países de primeiro mundo, aliás. Kerala, um estado indiano de cerca de quarenta milhões de pessoas (há décadas governado por partidos de esquerda) tem tido sucesso em ‘achatar a curva’ e manter sua população protegida graças ao sistema relativamente barato de atenção básica e saúde da comunidade já instalado, além de diversos esquemas de proteção social. O foco da reação à pandemia, lá, foi no rastreamento e isolamento de novos casos, além do tratamento dos casos sem retirar os pacientes de suas casas. O hospital – o local onde ocorre a principal ‘batalha’ quando se pensa que a pandemia-é-guerra – é apenas o último recurso, e esse é o caso tanto em períodos de normalidade quanto agora, durante a pandemia.
Nesse sentido, a sugestão aventada por diversos economistas ortodoxos (mesmo alguns que sugerem o aumento do gasto agora, como Marcos Lisboa e Meirelles) de que, passada a pandemia, tudo “volte a ser como antes”, é absurda. Essa sugestão, claro, é inerente a pensar que a pandemia-é-guerra. Ao contrário do que ocorre no fim de uma guerra, no entanto, uma vez acabada a pandemia, o ideal é mantermos no lugar, se não todas, pelo menos grande parte das estruturas criadas para a debelar. Apesar de particularmente aguda, a crise causada pelo coronavírus tem características em comum com diversas crises econômicas e sanitárias pelas quais passamos anteriormente, como a crise econômica de 2016 e as epidemias de dengue e zika. A situação de vulnerabilidade aguda à qual grande parte da população está sendo reduzida já era vivida por uma parcela considerável dos brasileiros. Por que devemos garantir a subsistência de alguém que perde o emprego agora, mas não daqui a dois anos?
Nesse sentido, é particularmente contraproducente pensar no governante como ‘comandante-em-chefe’ e na população como soldados. Pelo menos um líder que usou a metáfora da guerra para solidificar sua posição, Viktor Orbán, da Hungria, aproveitou a legislação passada pelo parlamento para introduzir leis que o auxiliam a perseguir jornalistas e a desviar recursos do Estado para grupos oligárquicos, deixando descobertas as camadas mais vulneráveis da população. No Brasil, a metáfora é usada para justificar a crescente contratação de oficiais do exército para cumprirem funções, para as quais não têm capacitação, no Ministério da Saúde – parte da estratégia de Bolsonaro de comprar o oficialato e garantir a sustentação futura de seu governo. Mesmo se neste momento se faz necessário renunciar a parte de nossa liberdade, a metáfora da guerra esconde a importância, agora maior do que nunca, do papel de cidadão crítico e ativo. Para que se possa fiscalizar as ações dos governos diante da pandemia, é necessário que compreendamos a nós mesmos como sujeitos autônomos, não soldados. Disso dependem dezenas de milhões de pessoas miseráveis, no Brasil e no resto do mundo.
2.
O enquadramento conceitual possibilitado pela metáfora pandemia-é-guerra é particularmente convincente porque fornece critérios através dos quais cada um de nós pode avaliar a justeza de suas ações, além de ajudar a modular a nossa reação emocional às ações de nossos concidadãos e governantes. A ideia de que estamos em uma ‘guerra total’, em outros termos, contamina, toda ação e todo agente, com o caráter existencial típico dessa variedade de conflito. Sair ou não sair de casa, por exemplo, torna-se uma ação cujos efeitos – quer como exemplo a outras pessoas, quer pelo fato de ajudar a propagar a doença – ganha um enquadramento nacional, mesmo mundial; e esse enquadramento moral certamente ajuda cada um a pensar no desconforto do confinamento como marcado por valores positivos (‘disciplina’, ‘auto sacrifício’), além de dotado de propósito. Ficando em casa, compomos o ‘front doméstico’, como os trabalhadores que fabricavam armas na Segunda Guerra. Ao mesmo tempo, a metáfora tempera com realismo e pragmatismo as escolhas que devem ser feitas pelos governos [8]. Não haveria espaço, nesse momento, para ideologia: é necessário seguir o que dizem os especialistas, promovendo o isolamento social e o gasto contracíclico (ambas medidas que contam com incomum unanimidade entre cientistas e economistas, respectivamente).
O principal problema do enquadramento moral fornecido pela ‘pandemia-é-guerra’ diz respeito ao modo como vemos o trabalho dos profissionais da saúde. Eles seriam, nesse modelo, os soldados na linha de frente, arriscando suas vidas para salvar as nossas. Isso é certamente verdade, mas há um detalhe pernicioso. Os mesmos governos que propalam a ideia dos profissionais da saúde como heróis são os responsáveis pela falta de preparação que ocasiona o risco à vida desses profissionais. Na guerra total, a expectativa de que se perca a vida no front é razoável, mesmo se governo tiver feito de tudo para garantir as melhores condições possíveis de luta. Na pandemia, pelo contrário, se o governo fizer sua parte, garantindo o isolamento social, a disponibilidade de equipamentos de proteção pessoal e testes em massa, os profissionais de saúde não terão seu ambiente de trabalho transformado em algo semelhante a um front. Chamar a pandemia de guerra é um modo de normalizar a situação absurda em que foram colocados os profissionais da saúde, como se fosse esperado que atuassem como soldados.
Dizer que estamos em uma guerra contra o coronavírus tem efeitos, também, sobre o modo como vemos os doentes (e como os doentes veem a si mesmos). Ser infectado, afinal, é equivalente a não ter defendido adequadamente uma parte do território da nação atacada, tornando-se assim também um agente da invasão. Além de doente, o infectado se torna também um derrotado, um inimigo, ou um desertor; e, como bem disse Susan Sontag, “nada é mais punitivo do que dar a uma doença um significado”.
Se o seu caso for grave, o doente tem seu próprio corpo transformado em um campo de batalha. Nesse sentido, como notou Sontag (escrevendo sobre o câncer, outra doença frequentemente comparada a uma guerra), o único tratamento imaginável é um ‘contra-ataque’ cujo objetivo é a vitória final, custe o que custar. No caso do Covid-19, o contra-ataque é particularmente penoso ao paciente. Os respiradores mecânicos usados nos casos mais graves têm (de acordo com a ainda limitada informação disponível) uma baixa chance de sucesso [9], e os pacientes entubados com esses aparelhos devem ser sedados, além de isolados do contato com a família, diminuindo sua capacidade de mudar de ideia sobre o curso de tratamento. O uso prolongado de respiradores artificiais pode causar dano aos pulmões, que pode ser agravado se o equipamento for improvisado ou tiver baixa qualidade, como é o caso de milhares dos respiradores sendo produzidos às pressas neste momento, ou se os profissionais que estão administrando o tratamento não estiverem habituados a utilizá-lo. Tampouco é claro se o uso de respiradores mecânicos é necessariamente mais efetivo do que modos menos invasivos e violentos de administrar oxigênio – tratar a doença como uma batalha tende à maior valorização dos métodos aparentemente definitivos.
De todo modo, muitos profissionais da saúde têm usado o vocabulário militar para descrever a situação distópica em que se transformaram seus locais de trabalho. Isso é certamente compreensível, dado que, tendo jurado prover tratamento a quem necessita, é psicologicamente preferível pensar em si mesmos como membros de uma organização hierárquica se sacrificando pelo resto da sociedade do que como parte de uma categoria profissional essencial negligenciada pelo governo. Mas, diante de algumas das decisões mais difíceis que são obrigados a tomar, o vocabulário militar se torna insuficiente. O exemplo mais dramático é a escolha, diante de uma situação de escassez, de quem vai receber tratamento.
Apesar de sua ineficiência e riscos, os respiradores mecânicos parecem ser o último recurso para pacientes que desejem que se faça de tudo para salvá-los. Em um dado momento, nos locais em que os governos não adotaram o isolamento social rápido o suficiente, passou (ou passará) a não haver respiradores suficientes para atender a esses casos. Enquanto a escassez de penicilina em uma guerra total pode motivar a priorização de soldados com doenças venéreas em detrimento dos que perderam membros – como fizeram os Aliados na Segunda Guerra, seguindo um cálculo estritamente utilitário –, em uma pandemia o único consequencialismo admissível deve levar em consideração as chances de sucesso do tratamento e o sofrimento que poderá causar no paciente. Diversas sociedades de médicos intensivistas (como a Saarti, da Itália, e a Semicyuc, da Espanha) publicaram recentemente guias de ética clínica que, reconhecendo a anormalidade da situação, tentam codificar o “único bem possível” [10]: um abandono relativo dos mandamentos éticos hipocráticos e a tentativa de estabelecimento de quais critérios podem justificar a rejeição de tratamento a um paciente para reservar o respirador a outro. Inevitavelmente, ambos os manuais levam em consideração quais pacientes têm mais chances de se recuperarem (no caso do Semicyuc, há a explícita recomendação de se não levar em consideração a idade do paciente).
Apesar de algum consequencialismo ser, nesse sentido, inevitável, em ambos os documentos os valores morais da qualidade de vida, de evitar o sofrimento alheio e da eutanásia são pedras de toque. Esses documentos se tornaram fundamentais para que os funcionários da saúde nas alas de Covid-19 sejam capazes de tomar decisões amparados por uma reflexão ética cuidadosa. Assim, mesmo se o vocabulário militar acaba se infiltrando nesse tipo de decisão (os pacientes passam por uma ‘triagem’), diferentemente de uma guerra, as decisões sobre vida e morte tomadas tanto no ‘front’ quanto pelo ‘comando’ são baseadas em manuais capazes de convencer profissionais treinados a valorizar a vida, e suas decisões são escoradas por uma reflexão moral, não utilitária.
A atribuição de uma agência ao vírus – quando o tratamos como inimigo – tem, também, efeitos contraproducentes. Como é impossível atribuir agência a um vírus, a percepção da pandemia como uma guerra motivou muitos a buscarem quem seria, então, o verdadeiro mandante de suas ações. Em outros termos, na metáfora pandemia-é-guerra o vírus cumpre muito mais satisfatoriamente o papel de arma do que de inimigo. O enquadramento metafórico ajuda, assim, diversos atores políticos a localizarem em seus rivais a responsabilidade pelo o que está ocorrendo, levando-os a culpabilizar a China (como fizeram membros dos governos Trump e Bolsonaro), a ciência, ou mesmo as novas redes de internet de 5G, de acordo com a conveniência de quem discursa.
Pensar no vírus como arma dos inimigos incentivou, paradoxalmente, reações desdenhosas à pandemia por parte dos presidentes brasileiro e americano. Ambos consideraram a própria pandemia como uma tática de seus rivais para derrubar as economias nacionais e pôr em risco suas reeleições. Em suas visões de mundo transacionais e egocêntricas, só há boas notícias ou ataques pessoais; o mundo pode ser descrito como eles (e seus aliados) contra todos. Nesse sentido, a noção de que a pandemia-é-guerra foi facilmente assimilável como apenas mais um movimento de seus inimigos na guerra maior que é a sua sobrevivência política. Como a arena em que lutam é o Twitter, a reação dos dois foi ridicularizar a própria doença, e (o que dá no mesmo) apostar no aparecimento milagroso de uma cura que resolverá imediatamente o problema (possivelmente a cura estaria sendo escondida pelos seus rivais). Apenas recentemente Trump mudou de discurso, finalmente percebendo as vantagens que poderia obter em termos de popularidade se apresentasse a si mesmo como um ‘presidente em tempos de guerra’.
Por fim, cabe questionar se o uso da guerra como metáfora (de forma geral) tem efeito sobre o modo como nossa sociedade vê tanto a guerra quanto nossa habilidade de diminuir os riscos aos quais somos constantemente submetidos. Em todos os seus usos na política, a ‘guerra’ é apresentada como uma ação autocontida no tempo, capaz de resolver, graças a uma mobilização intensa, alguns dos problemas mais complexos com os quais os governos têm de lidar. Inevitavelmente, a guerra é apresentada como uma solução onde outras soluções – democráticas, negociadas, deliberadas – falharam. Isso parece ter consequências para como nossa sociedade compreende tanto seus problemas – como emergências, sanáveis através de ação vigorosa e pontual – quanto a guerra – como uma força para o bem. E quando se torna claro que um fim bem marcado e compreensível não chegará, a ameaça não parece mais existencial, e a metáfora deixa de ser capaz sequer de promover a mobilização – sua principal virtude.
3.
A metáfora da pandemia-é-guerra, como vimos, tem como uma de suas principais virtudes a clareza, que a torna capaz de ilustrar vivamente algumas características importantes da pandemia e como devemos encará-la. Assim, apesar de seus consideráveis problemas, tentar trocar de metáfora – se isso fosse possível – implicaria em uma perda de inteligibilidade e do senso de urgência que a ideia de que a pandemia-é-guerra fornece. De todo modo, seu uso não determina necessariamente que os governos fracassarão em debelar a crise do coronavírus, que se tornarão mais autocráticos, ou que as soluções adotadas nesse momento terão vida curta depois de a pandemia acabar. Há pelo menos um caso em que a metáfora da guerra teve grande sucesso na arena política, quando a ‘guerra à pobreza’ de Lyndon Johnson levou à criação de alguns dos programas mais importantes e duradouros da (ainda falha) rede de seguridade social e saúde pública dos EUA. É notável que grande parte dos profissionais de saúde tratando pessoas com casos graves de Covid-19 se refiram aos seus locais de trabalho como ‘linhas de frente’ ou mesmo como ‘batalhas’; dada a necessidade de dar a esses profissionais tudo o que necessitam, seria absurdo tentar roubar-lhes uma metáfora.
A adoção de uma metáfora alternativa também não torna a ação governamental necessariamente virtuosa, como deixa clara a comparação de Jair Bolsonaro da crise com um paciente que tem ‘duas doenças’, o coronavírus e o desemprego, nenhuma das quais pode ser negligenciada em nome do cuidado da outra. A imagem ajuda Bolsonaro a relativizar a importância da pandemia, desestimulando o isolamento social e colocando em risco grande parte da população e da economia brasileiras. A disjunção entre a pandemia e o desemprego é, além de tudo, desastrada: há evidências de que a adoção proativa e intensa do isolamento social foi determinante para saídas mais robustas de cidades da crise econômica provocada pela Gripe Espanhola de 1918. Permitir que grandes quantidades de pessoas acabem na UTI, além de evidenciar desprezo pela vida dos cidadãos, levará também a enormes custos ao Tesouro, que poderiam ser empregados em medidas de alívio econômico ou de proteção aos funcionários de hospitais.
A ‘pandemia-é-guerra’ parece falhar, principalmente, ao deixar de mostrar quão normal é a situação de anormalidade na qual estamos. Cientistas preveem uma nova pandemia pelo menos desde 1918. Os recursos necessários para amenizar os estragos potenciais são amplamente conhecidos – e, de fato, estão sendo utilizados neste momento por países e estados que investem grande parte de suas riquezas em seus sistemas de saúde pública e de bem-estar social. Os riscos aos quais estamos submetidos – doença, desemprego, crise econômica – são, apesar de sua enorme intensidade, aqueles os quais o Estado deveria estar preparado para suavizar.
Nesse sentido, a situação pela qual passamos é mais bem descrita como uma ‘crise’, termo talvez genérico demais para substituir ‘guerra’, mas mais adequado para que se possa cobrar aos governos sua falta de preparação e de estrutura. ‘Crises’ são recorrentes, ao passo que guerras não necessariamente são. É possível que não haja mais guerras globais (as bombas nucleares, espera-se, são suficientemente dissuasivas); é quase certo haver novas pandemias. Graças a uma crise, desenvolvemos instrumentos capazes não apenas de diminuir o impacto das próximas crises como de aliviar problemas semelhantes e recorrentes, mas de menor intensidade, algo que não podemos dizer das guerras. A título de exemplo, diversos sistemas europeus de saúde pública foram criados na esteira da Gripe Espanhola de 1918. Esses sistemas não apenas são fundamentais para lidar com novas epidemias, mas ao longo desse século certamente contribuíram para um aumento na qualidade de vida. Se formos inteligentes e ativos politicamente, e não simplesmente submissos e obedientes, faremos desta pandemia o instrumento pedagógico que mostrará à população o valor dos mecanismos públicos de proteção social e solidariedade. ∎
Edição: Luiz Eduardo Freitas, Maria Carolina Moreira, Maria Lessa, Maria Izabel Varella, André Martins, Luiz Fernando Aguiar
Agradecimento: Gabriel Lima
Antonio Kerstenetzky é mestre e doutorando em Filosofia pela USP. Foi editor da falecida Folha do Gragoatá (2012-2016) e é editor da vivíssima Capivara