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eclética, plural e marxista-cultural

[1] Antonio Candido, “O direito à literatura”.

[2] Roland Greene et. al., The Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics, trad. nossa.

[3] Respeitando a grafia do meio, opto por “pixo” e “pixação” e não “pichação”.

[5] Jorge de Sena, “O Vilancete sobre o poema ‘ensina a cair’ (Luiza Neto Jorge)”.

Ensaio aberto

Maria Lessa

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As relações entre forma e conteúdo são o tema daquele que é talvez um dos mais antigos debates de que se tem notícia na reflexão ocidental sobre o fazer poético. Seja nas Ars poeticas da Antiguidade, seja entre os críticos do Renascimento, os dois fatores são tratados como critérios fundamentais na separação dos diferentes gêneros da poesia. Aristóteles já propunha a distinção de “espécies de poesia imitativa” a partir da combinação de três fatores: o meio, o modo e o objeto da imitação. Assim, na Poética, defende que a epopeia e a tragédia, ambas em verso e com o mesmo objeto (que podemos aqui tomar como algo similar ao que chamamos de conteúdo), diferem em termos do meio e do modo, uma vez que a primeira será narrativa e “em metro único”, ao passo que a segunda será dramática e de metros variáveis.

 

Muito tempo depois, no século XIX, abundavam tratados de metrificação e de rimas que visavam auxiliar poetas aspirantes na empreitada que tinham à frente, acentuando a importância de se atrelar o conteúdo a uma forma específica e bem ordenada. Nos manuais, podemos encontrar não tanto formas, mas “fôrmas” poéticas nas quais se encaixavam as palavras pertencentes ao léxico em voga: flores, amores, pastores, rumores. O Tratado de metrificação portugueza – para em pouco tempo e até sem mestre se aprenderem a fazer versos de todas as medidas e composições seguido de considerações sobre a declamação e poética, de 1858, escrito por António Feliciano de Castilho, é um dos poucos publicados em Portugal nesse período que tenta aliar a doutrina da forma com uma reflexão acerca do “sentimento poético” e de “philosofia”, apesar do título.

 

Já em dias de crise dos gêneros, seria possível dizer que a forma não apenas varia de acordo com o conteúdo, mas que é criada ou reabilitada por cada poeta, a cada poema, não havendo qualquer regra externa que a regule. Tal contrato de fidelidade que se estabelece entre forma e conteúdo parece se apresentar, na arte moderna e contemporânea, como um pressuposto ético do fazer artístico. Trata-se aqui de uma ética que não diz respeito apenas ao compromisso assumido, nas obras, entre o artista e a comunidade humana que integra, mas a um princípio ordenador singular e interno às próprias obras, um pacto que alia indissociavelmente o “quê” ao “como”.

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Podemos pensar sobre a maneira como os poemas do português Carlos de Oliveira, por exemplo, propõem tanto uma reflexão acerca da pobreza dos homens do campo, quanto reforçam, na rarefação e na quebra dos versos, no excesso de espaços em branco, na sua forma, portanto, a atenção à escassez da vida dos trabalhadores que emerge como tema principal de muitos dos seus livros. A justiça e a justeza de sua contemporânea-conterrânea Sophia de Mello Breyner Andresen são também uma tentativa de fazer um laço ético – seja ele externo à obra, em termos de um compromisso com a humanidade, seja ele interno, voltado para a vinculação forma-conteúdo que, em sua poesia, se manifesta na busca por uma ressonância entre os versos e o universo. Antonio Candido diria que, em literatura, a mensagem é inseparável do código, de uma forma específica que a ordene. [1]

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A emergência de uma ética da estética, do vínculo indestrinçável entre “o quê” e “como”, pode ser pensada como um vinco autorreferencial, um metadiscurso ao nível do subtexto a margear aquilo que seria a porção mais aparente e imediata de uma obra, já que um dos focos de sua ação recai justamente sobre de-qual-forma será composta. Esse movimento seria considerado paradoxal se considerássemos uma definição binária de forma, que a caracteriza como “aquilo que não é conteúdo ou contexto; o formato ao invés da substância”. [2]

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Podemos sair da esfera das reflexões poéticas ligadas à tradição humanista e, ainda assim, encontrar na cultura marginal a mesma atenção ao código, essa espécie de dobra “meta”, na qual a forma é tomada como objeto de uma investigação, uma vez que assume um protagonismo na construção de significado.

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É curioso observar como a ética interna à obra e seu peculiar mecanismo metarreferencial se manifestam nas pixações [3] presentes na maioria das grandes cidades contemporâneas:

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Um grupo de pixadores sai de madrugada com seus sprays de tinta, anda alguns quilômetros, vai a um edifício no centro da cidade de São Paulo. Na manhã seguinte, veem-se gigantescas letras pretas no topo de um prédio de trinta andares. Para muitos que passam por ali, aquela inscrição representa meramente uma poluição visual, um ato de vandalismo, um crime. É certo que o espectador comum olha o suporte das letras, isto é, vê o muro do prédio que outrora estava intacto. Antes, com o muro limpo, era possível que alguém passasse por ali todos os dias a caminho do trabalho e nem sequer notasse a sua existência. Agora, o contraste com a pixação garante a sua visibilidade, faz com que o muro apareça.

 

Em geral, a atenção dada ao suporte é um fato, talvez o fato, que garante ao pixo uma ação poético-visual: a rua, o meio urbano, a conquista improvável e muitas vezes inexplicável do trigésimo andar de um prédio, a escalada mítica até chegar lá, a “feiura” e aparente ilegibilidade da marca inscrita de um indivíduo à margem da ordem social paulistana são todos elementos fundamentais à construção do significado. Se ignorarmos a forma, a “tela” da pixação e as ações que esta pressupõe, o escrito perde seu sentido.

 

Assim, a pixação aposta na materialidade do suporte e na evidenciação da forma, no meio e no modo, como objetos da obra. Nela, portanto, forma e conteúdo são indissociáveis, fundamentando sua ética interna e seu subtexto autorreferencial retroalimentador e provocando, no espectador urbano, uma indagação de como teria sido feita e por quem. Ao mesmo tempo, ao pixo se atrela uma carga ética social, uma vez que representa a conquista da visibilidade por indivíduos que de outra maneira permaneceriam invisíveis, chamando à ação aqueles que, como os pixadores, partilham da mesma situação.

 

No Rio de Janeiro, “Não fui eu” e “Tinta fresca” são exemplos de outra maneira de metarreferencialidade (talvez literal) que pode assumir a vinculação forma-conteúdo da arte urbana. Ambos parecem falar da própria escrita no muro.

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O primeiro exibe um gesto paradoxal no qual ativamente se vandaliza o espaço público ao mesmo tempo que, em termos discursivos, nega-se tê-lo feito. Com isso, “Não fui eu” aponta uma isenção da culpa referente à identificação da pixação com o crime, quando só pode se realizar como tal. A pixação, portanto, é uma afirmação que nega a si mesma, engendrando um paradoxo a nível da articulação forma-conteúdo.

 

O caso de “Tinta fresca” é similar. Retomando uma expressão que se afixa em objetos recém pintados, como um banco de praça ou um muro na rua, “Tinta fresca” realiza aquilo mesmo que enuncia. Isso significa que, quando o Tinta fresca escreve no muro da cidade, a tinta utilizada para registrar a mensagem estava, de fato, fresca. Naquele momento, forma e conteúdo coincidiam integralmente e se referiam mutuamente, revelando aquilo a que chamamos ética interna à obra. Depois de secar, contudo, “Tinta fresca” provoca, no espectador, um retorno ao momento da pixação, fazendo com que esteja sempre diante de algo que já não é mais o que anuncia.

 

Releia, por favor, o primeiro período deste texto.

 

Agora, continuaremos tentando imaginar como se dá a relação forma-conteúdo, mas com menos rigor, em esferas além da artística.

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No meio político, são diversas as tentativas de aliar os dois termos e muitas são as falhas no percurso. Diríamos mesmo que grande parte do trabalho de um marqueteiro de campanha reside no esforço de os unir de modo a fazer cumprir a suposta ética do discurso, na qual o conteúdo responde à forma e vice-versa. Uma postulante à prefeitura de um pequeno município no interior de um dos mais miseráveis estados brasileiros pode se dirigir aos eleitores com propostas não apenas necessárias, mas do interesse de todos e absolutamente realizáveis. Sabemos que o nível de aceitação de seu discurso depende não apenas do seu conteúdo, mas de inúmeros outros fatores, entre os quais se destaca a forma, desde aquela com que profere suas falas – o seu carisma, sua maneira de articulação das linguagens verbal e corporal, sua paixão ou a frieza – até, e sobretudo, a que se constitui no apelo de uma estrutura narrativa.

 

Da mesma maneira, um pronunciamento de um presidente endereçado a uma população descontente, da qual participam 12 milhões de analfabetos, dificilmente será recebido com a naturalidade desejada caso a roupagem narrativa do hipotético representante do povo esteja desbotada e carunchada e caso seja dotada de uma linguagem excessivamente rebuscada, pontuada com complicadas mesóclises e dedo indicador em riste. Diríamos, retomando Candido, que a mensagem é inseparável do código e, ainda, que este varia de acordo com o receptor.

 

Na sala de aula, a associação ética entre forma e conteúdo persiste, com igual necessidade de atenção ao endereçado. Para uma professora de literatura estreante no meio universitário, pode ser tentador produzir um roteiro de aula no qual estarão escritos absolutamente todos os passos que deverá seguir ao longo de uma hora e quarenta minutos. Em sua pouca experiência, parece mais confortável e certamente mais seguro seguir um caminho único, pré-traçado, no qual não haja qualquer chance de se perder ou, pior, de encontrar a incômoda surpresa da sua própria ignorância e o desconcertante saber do aluno que a olha. Para essa professora, a forma está preestabelecida, o conteúdo está bem delimitado e o endereçado é um espectador incólume, passivo.

 

Falta, é claro, a ética interna ao discurso. A que forma corresponde uma aula sobre poesia? Ou qual deveria ser a forma de uma aula sobre o ensaio? Parece-nos que, como campo aberto de leitura e de convivência de interpretações, a poesia não pede uma voz única no trabalho em sala de aula. Da mesma maneira, ao ensaio não parece interessar a defesa enfática de um ponto de vista, tampouco a construção de verdades absolutas, mas a busca da sedução do leitor por um caminho imprevisto, onde reina o prazer do pensamento livre e em constante metamorfose.

 

Para que estabeleçam a relação ética entre forma e conteúdo, as aulas de leitura de poesia e de ensaio deveriam ser igualmente abertas, contingentes. Isso significa que é necessário respeitar uma concepção topológica da aula como espaço-tempo onde o sentido se produz. [4]

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O roteiro preestabelecido é o impeditivo fundamental e um problema a ser abolido urgentemente. Como um script, delimita o universo de variáveis gerado pela presença dos alunos, reduz os hiatos e intervalos da fala da professora, e recusa, assim, o fluxo do pensamento que brota, em ato, na aula, encerrando em uma forma rígida um conteúdo que tende à liberdade. Nessa perspectiva, um roteiro ortodoxo significaria a transformação da aula em um espetáculo teatral no qual atua, sozinha, a professora.

 

Podemos pensar como tal modelo se impõe autoritariamente tanto aos alunos, na posição passiva de quem recebe uma informação predeterminada e totalitária, e aos poemas e ensaios escolhidos, fechados em uma leitura única, quanto pesa, também, sobre a professora que o propôs. Fruto de uma reflexão solitária anterior, o texto escrito no roteiro já não corresponde ao pensamento que se move progressivamente no transcorrer da aula. Entre a professora em ato e a autora do texto, há uma descontinuidade.

 

Georg Steiner, num ensaio a respeito das implicações da cultura do escrito sobre a oralidade, aponta que aquele é normativo e prescritivo, reivindicando o “magistral” e o “canônico”. Na contramão disso, encontra-se o “intercâmbio oral” que fundamenta o método socrático, no qual se “autoriza o questionamento imediato, a contradeclaração e a correção”. Nele, “o encontro real, a presença e o ato de presença do interlocutor são indispensáveis”. Assim, para que alcance a ética forma-conteúdo, a aula precisa ser um exercício de diálogo e de convivência de ideias – mais próxima, portanto, de Sócrates do que das Tábuas da Lei – fazendo com que a troca oral desloque o escrito de sua rigidez e o faça adentrar no campo contingencial.

 

Com a abolição do script, uma aula pode se assemelhar a uma sessão de análise, na qual a professora ocupa o lugar da analisante, e o poema ou o ensaio que devem ser trabalhados em sala funcionam como o sonho da noite anterior. Ela entra no consultório, cumprimenta a analista, deita-se no divã, espera um tempo até que a agitação da rua se acalme e que se instale algum tipo de silêncio. O pontapé inicial da fala é dado pelo sonho, ou por aquilo que nele se manifesta. A partir daí, o campo semântico e a gramática da sessão serão determinados pelo sonho. Como na sala de aula, é preferível que não se saiba com exatidão todos os passos que serão seguidos, que haja espaço (tanto quanto possível) para a descoberta de ideias, para a interrupção ou não da analista. Seja em uma, seja em outra situação, é importante que se preste uma atenção não muito rigorosa ao que se diz, e que forma e conteúdo advenham um do outro, reciprocamente.

 

Outro problema formal na sala de aula reside na sua organização espacial. O paralelo com a análise, então, cai por terra, uma vez que, nesta, os lugares estão excessivamente fixos: a analisante no divã, deitada; atrás dela, a analista sentada na poltrona, invisível. No extremo oposto, em uma aula sobre poesia e ensaio, é preciso que todos possam se ver – não apenas a professora deve ver e ser vista, mas os alunos devem ver a si mesmos, para que a palavra não pertença a uma única pessoa e todos estejam igualmente implicados no processo do desenvolvimento interpretativo.

 

A forma preferível é, portanto, a de um círculo. Tal disposição aboliria os conceitos de frente e fundo da sala, do tablado sobre o qual se eleva a professora e o nível baixo em que se encolhem os alunos. Num círculo, o olhar dos alunos não precisa se fixar à frente, podendo transitar mais livremente por aqueles presentes na sala ou ser direcionado para um ponto de abstração, posto que a professora, por não ver todos os alunos de imediato, como na organização tradicional, é incapaz de controlar a direção dos olhares. Horizontal e verticalmente, estariam todos os participantes sentados no grau zero, já que “o poema ensina a cair: sentado” [5]. O protagonismo (se é que há algum) passa a ser assumido pelos poemas e ensaios sobre os quais se trabalha. Nesse ponto, é curioso observar como a forma, na sala de aula, para além de atender à vinculação ética com o conteúdo, deve se comprometer com uma função diante dos alunos, a saber, restituir à poesia seu caráter inesgotável e, ao ensaio, o prazer do pensamento em contínuo movimento.

 

A aula deixará de ser, portanto, um espetáculo fechado e passará a ensaio aberto, sempre mutável e disposta à contribuição coletiva. Eliminados todos os excessos que limitavam a sala de aula a priori, será possível passar à concepção topológica da aula como lugar onde o sentido se produz, e a jovem professora poderá, finalmente, se pôr em busca da ética forma-conteúdo-função. Na falta de experiência, abre-se espaço ao experimento. âˆŽ 

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Edição: Antonio Kerstenetzky

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Maria Silva Prado Lessa é leitora e professora. Mestre em Literatura Portuguesa pela UFRJ, desenvolve, na mesma instituição, tese de doutorado sobre a obra poética do português Mário Cesariny e seus diálogos interartísticos.

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mariasplessa@gmail.com

Âncora 1
Âncora 2
Âncora 3

[4] Parafraseando Eduardo Prado Coelho, sobre a poesia de Fiama Hasse Pais Brandão: “Apresentação de um livro: (Este) Rosto”.

Âncora 4
Âncora 5
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