A Eva Staif
Se a escrita e o silêncio reconhecem um ao outro nesse caminho que os separa da fala, a mulher, silenciosa por tradição, está próxima da escrita. Silenciosa porque seu acesso à fala nasceu no cochicho e no sussurro, para desandar o microfônico mundo das verdades altissonantes. Sua relação com a marcialidade dos discursos estabelecidos foi sempre tão calada e lateral que os homens, paradoxalmente, qualificaram a mulher como “muito conversadeira”. E conversa não seria outra coisa que essa emaranhada mistura de níveis discursivos cujo dizer, como objeto, é o nada. A sussurrante conversa de mulheres foi criando uma cadeia indestrutível de sabedoria por transmissão oral que nunca foi reunida em livros.
No entanto, ao mesmo tempo que habita no avesso do “claro e transparente”, a escrita também baseia sua preservação em uma espécie de transmissão oral. Ninguém aprenderá a escrever como Góngora usando um manual de versificação. A poesia gongorina, receita milenária de avó, se cozinha nessa prática reiterativa que o cochicho de regras culinárias canaliza. Como a escrita não quer dizer nada, sua estranha “conversa” não pode ser recolhida em manuais, e apenas o oral sabe transmiti-la. E se a oralidade é o maternal por excelência – o seio fala, a boca do filho apre(e)nde –, pode-se dizer que o elemento feminino da escrita é a mãe. Com a mãe se aprende a escrever. Professora de escritores, é ela quem imprime à casa o sem-sentido prazeroso da conversa. Referindo-se a Paradiso, diz Eloísa, irmã de José Lezama Lima:
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As mulheres daquela família investiam grande parte do tempo em incessantes diálogos que se interrompiam para que a cotidianidade prosseguisse e voltavam a ser fiados com uma técnica aperfeiçoada. Esses diálogos deram às crianças da família uma cultura insuperável. [...] A tradição oral que nos foi transmitida enriqueceu nosso inconsciente. Mais tarde, o jovem poeta iria submetê-lo ao prisma de seu caleidoscópio. Nesse meio, tão exuberante, meu irmão vai incubando seu grande romance.
A mãe também imprime à casa o espaço artesanal, obsessivo e vazio de suas tarefas diárias. Costurar, bordar, cozinhar, limpar, quantas maneiras metafóricas de dizer escrever. Já é quase parte do senso comum comparar o texto a um tecido, a construção do relato a uma costura, o modo de adjetivar um poema à ação de bordar. Partindo do pressuposto de que as mulheres, delicadas até o detalhe, perdem muito tempo, as grandes companhias de limpeza preferem contratar homens. São elas que veem o pó escondido detrás dos objetivos e se detêm nele. Nessa lenta prática de ir descobrindo o que os outros não veem, aperfeiçoam seu ofício. Da mesma maneira, quando o olho que relê o escrito perde tempo encontrando sujeira no detalhe, trabalha como mulher. Polir um texto, lustrá-lo, são metáforas que nasceram na tarefa doméstica e a ela devem sua obsessão artesanal.
“Parmênides cego tecendo o tapete de Bagdá. / Começo porque sei que alguém me ouve / aquela que ouviu meu nascimento” [1], declara o tecelão Lezama Lima enquanto o fio de seu novelo é desenrolado pela mãe, sempre à escuta, calada interlocutora que com seu silêncio abre ao filho o lugar da escrita. Nessa fresta que as mulheres mudas prepararam e deixaram livre, puderam crescer alguns textos artesanais e femininos, como o de Lezama Lima. Já que ninguém lhes pediu que escrevessem, muitas mulheres, através dos séculos, incubaram o sintoma, canalizando-o na conversação ou nas tarefas domésticas. No entanto, o sintoma foi habitar em seus filhos, e assim surgiram algumas obras assinadas por homens, mas coescritas por mulheres. “Desejoso é aquele que foge de sua mãe” [2], diz um poema de Lezama Lima, enquanto o poeta fugidio descobre que o desejo espelhante da mãe não é outro que o mandato da escrita.
Na última conversa que tive com ela, recordo que me dizia: filho, como você ficará só quando eu morrer. Eu lhe respondia: o que farei sem você, minha mãe, e com voz firme ela me respondeu: escrever, escrever, pois você nasceu para isso, escrever, escrever,
confessa Lezama em suas cartas.
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Na sala de estar
Memória corporificada na conversa, a das mulheres encontrou também seu lugar de registro escrito: o diário íntimo, as cartas, os cadernos garatujados com receitas de cozinha, os cancioneiros acumularam durante séculos porções de idioma familiar. Sentadas no centro da casa, somente as mulheres podiam enraizar o romance no fluir memorioso que caminha pela árvore genealógica. Referindo-se a Victoria Ocampo, Leopoldo Marechal reflete acerca desse caráter memorioso da literatura feminina:
[...] o estudo e a expressão do fluir, o idioma da paixão consequente, a dor de perder a imagem no tempo e a doçura de recuperá-la na memória, tudo isto constitui, a meu ver, uma matéria literária sobre a qual a mulher pode alegar direitos quase naturais. E digo quase naturais porque, como já adiantei, a mulher não possui tal caráter em exclusividade, mas em alto grau de excelência em relação ao homem: a literatura de Proust, no entanto, revela muito de tal caráter.
Fascinado pelas diferenças, talvez Marechal ainda não consiga enxergar a ponte: Proust, como tantos outros artesãos do bordado e da trama, é filho da escrita feminina. Interlocutor de avós, mães, empregadas, põe na roda o diário íntimo, legaliza-o, torna-o literatura. E, embora para isso fosse necessário imprimir uma assinatura masculina – lei e homem encontram sua síntese perfeita na assinatura –, também era necessário que permanecesse sentado, como as irmãs Brontë imaginadas por Virginia Woolf, no meio da sala de estar. Para Woolf é no meio desse ambiente de conversas, de cruzamentos, de trabalhos domésticos, que se tece a história familiar. Charlotte e Emily, sem quarto próprio, acumulavam, a partir do lugar coletivo da casa, a matéria do romance.
Mas, assim como Proust pediu emprestado à mulher esse lugar da casa, as Brontë, para publicar – para se fazerem públicas –, pediram emprestada ao homem a assinatura, a legalidade.
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Do lado da bainha
Os arquétipos maléficos de uma literatura feminina confinada a certos temas e gêneros ocultam, mais uma vez, o aporte calado e rico da mulher a essa tradição artesanal e milenar da letra escrita. Textos lacrimogêneos, uma falsa lírica adoçada com “bondade” e “pudor”, a tematização permanente de certos conflitos vitais supostamente próprios da mulher, encheram páginas e páginas de uma literatura que, pretendendo ser “especificamente feminina”, é, na verdade, específica de um mercado. Se ao longo dos séculos as mulheres imprimiram à literatura – fosse escrevendo ou transmitindo aos homens que escreviam – o selo do artesanal, do não discursivo, isso não implica irracionalidade, tolice, ingenuidade, falso lirismo. Como para demonstrar o contrário, a modernidade encontra as mulheres involucradas ao chamado discurso “racional”.
Seguindo mais a tradição oral das avós que a tradição impressa da academia, algumas mulheres viravam o discurso teórico para trabalhá-lo pelo lado da bainha. Familiarizadas com as costuras, souberam que toda construção apoia suas bases em um fio não discursivo. Sínteses entre mães e professoras, introduziram o raciocínio linear e pedagógico por caminhos ziguezagueantes. Transformando quase em diário íntimo a teoria freudiana, Melanie Klein escreveu o peito materno, deixou que ele se perdesse na imagem literária para, assim, recuperá-lo como objeto teórico. Por sua vez, e metida a brigar em terreno masculino com sua obsessiva máquina de escrever, Julia Kristeva consegue torcer a visão cega dos discursos científicos em direção a um objeto frágil e esquecido: a linguagem. Outra mulher, Simone de Beauvoir, ensaia a forma de integrar teoria e romance para dar a seu objeto de reflexão um lar no qual se sinta cômodo. Pensar sobre a mulher e escrever como mulher se unem na casa de Beauvoir à força de apagar as espessas fronteiras entre gêneros literários.
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A vanguarda doméstica
Essa possibilidade feminina de espiar nas costuras para ver as construções pelo avesso abre à mulher, em sua relação com a escrita, o caminho da vanguarda. Vanguarda velha e nova na qual os textos deixam o leitor jogar com a artificialidade da feitura. E é na milenar escola das tarefas domésticas onde se aprendem as regras dessa modernidade. Velho como o mundo, somente o trabalho inútil e calado pode conseguir encadeamentos novos.
Temerosas de transgredir, muitas mulheres escritoras tiveram de justificar, ao longo dos tempos, suas inclinações vanguardistas. A propósito do aparecimento de Mascarilla y trébol (1938), Alfonsina Storni teve de elaborar uma justificativa que se transformou quase em desculpa. Procurando uma escrita clara e pedagógica, os leitores de Alfonsina esperavam que ela prolongasse na página o quadro negro escolar. Poeta e professora primária: dois papéis intercambiáveis que a mulher não tinha direito a diferenciar. Mas, se em princípios do século americano Gabriela Mistral e Alfonsina ensinaram as primeiras letras, também avançaram por elas até alcançar sua própria graduação na maestria poética. Com a idade de ser avós, estas escritoras escreveram seus textos mais transgressores. “Nos últimos anos, mudanças psíquicas se operaram em mim: é nelas que se deve buscar a chave desta relativamente nova direção lírica, e não em correntes externas que devastam minha personalidade verdadeira”, justifica-se Storni, “desnudando a alma” diante de seus leitores.
Apelar à autenticidade do sentimento que a leva a mudar de estilo literário: isso é o que protege a escritora das acusações de frieza e obscuridade, verdadeiras heresias quando provêm da pena de uma mulher. Um público que nesta época já havia digerido sem susto obras vanguardistas como as de Borges, Girondo, Macedonio Fernández, se desdobra ante a poesia de Alfonsina Storni e pede, infantil, que nada lhe seja exigido. É por isso que defender o que lhe pertence por tradição (a prática não discursiva, a experimentação, o artesanato) é um trabalho extra que a mulher escritora se obriga a fazer. Ninguém indicou com mais clareza o caminho para consegui-lo que Virginia Woolf. Ninguém sabe melhor do que ela que a frase “construção ideada pelo homem, demasiado pesada, demasiado pomposa, demasiado ampla” não serve à mulher na hora de escrever. “Se somos mulheres – acrescenta Virginia –, o contato com o passado se dá por meio de nossas mães, é inútil que acudamos aos grandes escritores varões em busca de ajuda”.
É no contato com a mãe que a frase se desarma. Sua pomposidade morre com a conversa, seu peso com o cochicho, sua amplitude com o silêncio. Lugar de marginalidade e desprestígio onde a mãe se comunica com sua filha, ali se sedimenta e cresce, como uma teia, o imenso texto escrito por mulheres. ∎
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Edição: Pacelli Dias
[1] José Lezama Lima, “Mi hermana Eloísa”, publicado em Fragmentos a su imán, 1977. (N. T.)
[2] José Lezama Lima, “Llamado del deseoso”, publicado em Aventuras sigilosas, 1945. (N. T.)
“Bordado y costura del texto” apareceu pela primeira vez em livro em 1983, como apêndice a El texto silencioso: tradición y vanguardia en la poesía hispanoamericana, volume que reunia ensaios sobre autores como Macedonio Fernández e Enrique Lihn, escrito durante o período em que a autora viveu no México. Posteriormente, foi republicado em Historias de amor (y otros ensayos sobre poesía) (Buenos Aires, Paidós, 2000).
Tamara Kamenszain é uma poeta e ensaísta argentina, nascida em Buenos Aires. É autora dos livros O gueto / O eco da minha mãe e O livro dos divãs, publicados pela editora 7Letras.
Clarisse Lyra é editora na Capivara e na Felisberta. Organizou e traduziu, junto com Mariana Ruggieri, o livro Discoteca selvagem (Edições Jabuticaba), antologia da poeta argentina Cecilia Pavón. É poeta e professora.
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