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eclética, plural e marxista-cultural

[1] Jacques Derrida, em Torres de Babel, vê-se tentado a dizer que um nome próprio, propriamente dito, não pertence à língua, porque não há interpretação possível em seu equivalente semântico dentro de uma língua. Embora, ali, ele se refira à intenção dos semitas de construir uma torre e dar a eles mesmos um nome, nomear a cidade, como que saudando uma dívida genealógica, pode-se entender, no presente contexto, a retirada do nome próprio como a negação do que há de singular, de intraduzível na humanidade do “desbatizado”.

[2] Chicano: diz-se de norte-americano de ascendência latino-americana, especialmente mexicana. Sendo a fronteira do México com os Estados Unidos uma das áreas de maior conflito global por causa da xenofobia levada a cabo pelo Estado estadunidense, os chicanos são assim tratados de maneira pejorativa.

[3] As datadas nomenclaturas usadas no ensaio de Clastres, como tribos, primitivos etc., já não deixam de gerar incômodo. Em uma demonstração de relativismo avant la lettre, Montaigne, em seu ensaio “Dos canibais”, diz: “porém, que classificamos de barbárie o que é alheio aos nossos costumes; dir-se-ia que não temos da verdade e da razão outro ponto de referência que o exemplo e a ideia das opiniões e usos do país a que pertencemos. Neste, a religião é sempre perfeita, perfeito o governo, perfeito e irrepreensível o uso de todas as coisas”.

Referências
 

CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. Trad. Theo Santiago. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

 

DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Trad. Junia Barreto. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

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GLANTZ, Margo. La polca de los osos. Oaxaca: Editorial Almadía, 2008.

 

KAFKA, Franz. O veredicto / Na colônia penal. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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MONTAIGNE, Michel de. Dos canibais. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2009.

 

VALENZUELA, Luisa. “Escribir con el cuerpo”. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2018. Disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com/obra/escribir-con-el-cuerpo-933371>.

A máquina ainda funciona: 
o corpo, a lei, a escrita

Fernanda Lobo

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Os que conhecem o texto “Na colônia penal”, de 1914, devem se lembrar do enredo, que ainda hoje parece tão próximo da vida quanto absurdo em sua forma de existir. Aos que não conhecem, nesse texto, Franz Kafka relata os momentos anteriores à condenação de um homem que não teve o direito de se defender, não sabia do que era acusado e não sabia sequer que havia sido condenado. Outra coisa que ele não sabia era o idioma francês, em que o oficial responsável e um explorador estrangeiro, que havia sido convencido a assistir ao momento da execução, conversavam diante dele sobre a ocorrência. “O princípio segundo o qual tomo decisões é: a culpa é sempre indubitável”, diz o oficial, recém-empossado juiz em uma reconfiguração do “velho sistema” - a nova função tem caráter menos de promoção e mais de acúmulo de funções no esquema de condenação obsoleto e sucateado, como fica claro ao longo da novela. Esse funcionário público é apaixonado pela máquina de execução, “um aparelho singular”, sobre cujo funcionamento discorre detalhada e ansiosamente. Cada interrupção causada pelos questionamentos do explorador sobre os trâmites do processo enche o soldado de irritação, porque tudo o que deseja é falar sobre a máquina usada na execução da sentença.

 

O condenado não podia compreender o que o oficial dizia ao explorador, embora sua fisionomia denunciasse o esforço inútil na tentativa de pescar qualquer informação sobre seu futuro em uma língua incompreensível para si. Ficava ali, com seu corpo sequestrado, à espera que algo lhe acontecesse. Na atmosfera de pesadelo da novela, bem coroada pela interdição da língua desconhecida do condenado, o soldado, ao ser questionado com certa insistência pelo explorador na tentativa de entender o processo, declara: “— Nossa sentença não soa severa. O mandamento que o condenado infringiu é escrito no seu corpo com o rastelo. No corpo deste condenado, por exemplo — o oficial apontou para o homem —, será gravado: Honra o teu superior!”. Ao que segue:  “seria inútil anunciá-la”, já que a “experimentaria na própria carne”.

 

No ensaio “Da tortura nas sociedades primitivas”, presente no livro A sociedade contra o Estado, que teve sua primeira edição publicada em 1974, o antropólogo Pierre Clastres recupera o texto de Kafka. Ao considerar o estreito vínculo entre lei e escrita, Clastres adiciona à equação uma nova variável, o corpo, como exemplo dos espaços, para nós, inesperados em que a lei pode ser escrita. No caso da ficção de Kafka, o corpo receberá a inscrição do mandamento que servirá para purgá-lo da falta, nunca antes enunciado ao condenado por meio de palavra alguma. A máquina escreverá durante doze horas em seu corpo, alcançando a carne cada vez mais profundamente a cada ciclo de funcionamento, até a sua morte. Assim, seu conhecimento da lei viria da carne. Na vida real, Clastres afirma que a aliança entre o corpo, a lei e a escrita é muito bem provada, por exemplo, a partir do testemunho de Anatoli Martchenko, dissidente soviético que fala sobre o nascimento das tatuagens nessa circunstâncias: “Conheci dois antigos prisioneiros comuns transformados em “prisioneiros políticos” [...]. Eles tinham a testa e as faces tatuadas: “Comunistas = Carrascos”, “Os comunistas sugam o sangue do povo”.

 

Sobre outro momento de escrita da lei no corpo (e, aqui, todas as barbáries constitutivas da lei estão incluídas), Margo Glantz, escritora mexicana de ascendência judia, lembra em seu ensaio “Harapos y tatuajes” que, no período de conquista da América, marcavam-se seres humanos na pele, como se fossem gado. Também nos campos de concentração nazistas, tatuava-se no antebraço esquerdo dos judeus e ciganos o número de matrícula que os inseria definitivamente naquele território. Os homens eram tatuados na parte externa do braço e mulheres, na parte interna. A marca no corpo substituía o nome próprio [1], trocando-o por uma cifra. Deixando claro, então, que a condenação se estenderia pelo tempo em que corpo houvesse. Um aperfeiçoamento da crueldade era alcançado pelo fato de a tatuagem ser proibida aos judeus ortodoxos.


Em movimento contrário ao que se faz nos campos de concentração, ao retirar dos judeus seus nomes, a publicação coletiva de poesias-performance, Tragic Bitches: an Experiment in Queer Xicana & Xicano performance poetry, traz uma performance em que os três artistas xicanos [2] queer se unem para nomear-se mutuamente, em um ritual poético que cessa o trauma da aniquilação da humanidade por meio do nome próprio:

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Releasing the X

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Herrera y Lozano: today

I give you back your name


no longer are you the

pinche

el arrastrado

el canalla

aborrecido

fucker

 

Anthony: today

I give you back your name

 

no longer are you the

hija de su chingada

puta

pendeja

mentirosa

desgraciada

 

Foxx: today

I give you back your name

 

no longer are you the

punk

asshole

closeted

mother

fucker

 

Herrera y Lozano: no

today I’ll call you

Juan

Anthony: Carolina

Foxx: Mocha

 

Os artistas entenderam a importância de se nomearem, se reconhecerem em seus nomes próprios, dizem, olhando-se seus nomes como quem diz “eu, em sendo humano, autorizo-me a reconhecer a sua humanidade e este gesto é legítimo”.
 

Além desses aparentemente distantes eventos, qualquer de nossos contemporâneos brasileiros têm na memória (ainda que esta, a essa altura, já abrigue tantos casos do sem-sentido real) a tatuagem feita forçadamente na testa de um jovem de 17 anos, na grande São Paulo: “Eu sou ladrão e vacilão”: uma sentença inscrita na pele, no rosto, é ostentada em vídeo feito pelos algozes nas redes sociais. Condenação feita à revelia até mesmo dos duvidosos trâmites da lei, que é dura. Uma sentença perpétua, que substitui um nome e qualquer possibilidade de um futuro, que não seja o de ladrão. Foi este o pacto proposto pela sociedade, o qual o jovem terá de cumprir no que lhe couber.

 

Voltando a Clastres, ele nos conta sobre o grande número de sociedades indígenas que usam da tortura em seus rituais de passagem. Rituais que, passado o máximo sofrimento do corpo, após o momento do rito propriamente dito, deixam na pele as marcas, as cicatrizes, os sulcos, que permanecem e se transubstanciam no pertencimento definitivo a uma comunidade. As marcas no corpo são a memória dos segredos de que agora os iniciados são dignos. Esses segredos devem ser passados aos futuros jovens em rito de iniciação igual ao que passaram. Um conhecimento, portanto, que parte do grupo para o indivíduo. Esse indivíduo que teve coragem para suportar o momento cruel do rito agora tem no corpo a lei primitiva. Dispensa, por isso, a lei escrita externamente a si, a lei do Estado, a lei separada, despótica.

 

Nos ritos de passagem, que servem, nesses casos, para que a sociedade explicite que o indivíduo iniciado não é melhor, nem pior do que todos os outros membros, para que não queira estar acima de todos e nem submisso a todos, a submissão à tortura é voluntária e tem um sentido, um preço que evitaria o mal maior: a lei despótica, externa à sociedade, que produz a desigualdade para depois punir os desiguais.

 

Pode ser pertinente relembrar, ainda, outro caso em que é manifesta a tríplice aliança entre corpo, escrita e lei. A escritora argentina Luisa Valenzuela, no ensaio “Escribir con el cuerpo”, conta que sai da embaixada do México em Buenos Aires em 1967, em plena ditadura militar, e caminha pelas ruas com a sensação de estar sendo perseguida. Deter informações privilegiadas sobre os asilados da embaixada e sobre os planos dos inimigos do governo não a coloca exatamente como uma “amiga da lei”. Apesar de, naquela noite, andar por todo o caminho até sua casa tomando precauções para não ser sequestrada ou alvejada por algum paramilitar de alguma torre, ela diz que se sente viva e, mais, que se sente feliz, mas não entende direito por quê. A resposta para tão estranha felicidade ela manifesta nos próximos momentos:

 

A resposta é simples, agora, tantos anos depois. Sinto-me – naquele momento me senti – feliz porque estava escrevendo com o corpo. Uma forma de escritura que só pode perdurar na memória dos poros. Escrevendo com o corpo? Isso mesmo. Tenho consciência de haver realizado essa ação ao longo da minha vida, intermitentemente, ainda que, para mim, seja quase impossível contextualizá-la.

Temo que se trate de uma ação ou uma modalidade secreta, informável, inefável (tradução minha).

 

Valenzuela diz que, ao caminhar, fugitiva e detentora de informações sobre o combate ao autoritarismo estatal, escreve com o corpo. Curiosa operação em que, para esquivar-se da lei do absurdo, escreve-se então com o corpo. Não sobre o corpo, como na lei da marcação das “sociedades primitivas” [3].  Tampouco, a escrita que substitui o nome e aniquila as possibilidades humanas, como nas leis autoritárias citadas. Mais adiante, Valenzuela, em seu mesmo ensaio, formula a si mesma a pergunta: por que escrevo “não com todo o corpo, mas apenas com essa simples extremidade superior que, por graça da evolução da espécie, possui um polegar opositor feito especialmente para sujeitar bem a lapiseira”? Pergunta-se, também, para que escreve “já que a pessoa neste caso pertence corpo e alma e mente ao terceiro mundo, onde existem urgências para nada literárias”. Como resposta (ou desculpa), diz que a necessidade de conservar a memória coletiva parece indiscutível.


Nesse sentido, a função do rito de passagem, nas sociedades ditas primitivas, e o da escrita, na sociedade civilizada sob ditadura, se cruzam. Conservar a memória coletiva, a memória do coletivo a que o indivíduo se filia voluntariamente, à revelia da dureza da lei constitui-se como o propósito maior desses atos. Valenzuela cita, ao falar das dificuldades do exercício de escrita, a fantasia que toda escritora já deve ter tido: a “nostalgia do presídio, a louca, romântica fantasia de que na prisão se tem todo tempo para si, para escrever e sonhar”, ao que, em seguida, contesta essa mesma nostalgia: “só mais tarde se aprende que o escrever é exercício de liberdade, um árduo exercício de liberdade e coragem”. A argentina conta, ainda, que um dos conselhos de Rodolfo Walsh para ela foi: “Esqueça a mensagem. Esqueça tudo aquilo que você tenha a dizer. Esqueça a ideologia. Esqueça tudo, exceto a história. Se sua ideologia é suficientemente forte, aflorará em cada palavra”. Correndo perigo e sem nada a aconselhar, autorizo-me a fazer uma observação sobre o conselho de Walsh: a ideologia não pode ser mais forte do que o corpo e suas marcas, não pode ser externa. Onde se põe o corpo, aí está sua palavra.

 

Voltando a Kafka, a máquina de tortura e justiça, principal elemento da trama, acaba por dar defeito apesar de todo o esmero do oficial responsável e se autodestrói quando este compreende o ocaso do dispositivo jurídico a que serve e coloca o próprio corpo no lugar do condenado. A máquina não funciona conforme o esperado, as agulhas para marcar a sentença “seja justo” alcançam mais fundo a carne do oficial, levando-o à morte imediatamente. Sua face não apresenta, depois de executado, sinal algum de redenção ou compreensão da lei.

 

Assim, neste ensaio de paráfrases, recupero situações muito distintas em que o corpo, a escrita e a lei são elementos que, postos em relação, movimentam-se, atravessando-se uns aos outros. Esses três elementos iluminam, aqui, ordenamentos simbólicos de pertencimento e projeção de exclusões e produzem, também, pontos cegos que levantam questionamentos. Em todos os casos aqui descritos, a motivação da escrita, ou da marca, passa pela necessidade de manutenção do que se chama memória coletiva, que marca os destinos dos corpos, que nunca deixam de ser, também, discursos. Nesse sentido, a conclusão de Valenzuela é pertinente: “podemos por o corpo para descansar, mas a memória, nunca”. âˆŽ 

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Edição: Victor Fernandes

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Fernanda Lobo é editora e pesquisadora de literatura latino-americana na USP.

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fernanda.neveslobo@gmail.com

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