[1] ERBER, Laura. “Pizarnik e a busca por uma saída”. In: Suplemento Pernambuco, n. 141, novembro de 2017, p. 19. Disponível em: http://www.suplementopernambuco.com.br/artigos/1987-pizarnik-e-um-livro-sem-saída.html.
[2] BOLAÑO, Roberto. “Un narrador en la intimidad”. Disponível em:
http://old.clarin.com/suplementos/cultura/2001/03/25/u-00301.htm?platform=hootsuite.
[3] BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. 2003, p. 109.
[4] GARCIA, Marília. Um teste de resistores. 2ª. Edição. Rio de Janeiro: 7Letras, 2016.
Um começo, meio que no fim
Clarisse Lyra
Sou fiel aos acontecimentos biográficos.
Mais do que fiel, oh, tão presa! Esses mosquitos que não me [largam!
Ana Cristina Cesar
Durante um tempo, pensei em começar a minha tese assim:
Quando começa a tese?
Não é certo que ela comece com a aprovação no processo seletivo para ingresso no Doutorado. Esse momento, marcado por uma série de necessidades contingentes, é como uma porta se abrindo. E não muito mais. Tampouco é certo que ela comece a partir da data da primeira matrícula. Então, o percurso pelas disciplinas ainda marcará uma série de pensamentos derivantes, estudos prévios, e o tempo, ah o tempo, este fator, parece estar inteiro à disposição pela frente.
Não estou certa de quando tem início a tese. Mas posso recuperar algumas cenas, não são mais que imagens, que me aparecem, são convocadas enquanto eu penso: quando surgiu a tese?
Alguém está morrendo no sofá. O sofá está numa sala, onde há também uma mesa, e estou sentada nessa mesa lendo os diários de Alejandra Pizarnik. É uma casa estranha para mim. Não me é familiar. Mas eu tento ocupá-la: vou ao quintal fumar um cigarro, sento à mesa e sigo, começo, o trabalho; preciso dizer ao tempo da morte que enquanto ele avança eu sigo, leio, anoto, me ocupo. A morte avança com tanta lentidão a ponto de eu pensar que preciso me ocupar, trabalhar; e ao mesmo tempo avança numa velocidade exasperante, que não se mede em horas nem minutos; se mede talvez na perda de volume.
Eu sigo lendo. A morte não se aproxima de mim. Não é de mim que ela se aproxima. Anoto: como era burguesa la Pizarnik; anoto: braguetas; _____; _____: pesquisar. E enquanto segue o desfile de angústias juvenis de Alejandra Pizarnik em seus 19, 20, 21 anos, enquanto ela coqueteia com o suicídio nas páginas de seu diário íntimo, eu vejo a morte se aproximar, em sua lentidão e sua velocidade absolutas. Até o momento em que eu fecho o diário.
Mas a tese não começa aí (com essa cena). Há muitas outras cenas, como havia muitas outras teses. Mas para esta tese aqui (que não exclui todas as outras teses imaginadas; que de algum modo porta todas as outras) essa cena foi uma espécie de injunção, algo inescapável, que se agarrou ao imaginário do tecido da escritura. A cena mostrou alguns limites, e esses limites exigiram ser pensados. Porque sim: o tempo do trabalho é o tempo da vida; o tempo da escritura é o mesmo das conversas com amigos, das cervejas, dos cafés, das idas ao cinema. Mas e o tempo da morte? Ele permite ser ocupado enquanto se assiste ao seu desenrolar? Ele permite que não se perca tempo, que se distraia e se produza em seu intervalo?
Escrevi esse texto como um começo; depois desisti. O gênero acadêmico, as boas maneiras e o bom senso preconizam a discrição e a reserva, que se fale do acontecimento sem jamais nomeá-lo, especialmente se ele toca o limite (e o acontecimento sempre toca) entre as preocupações estritamente intelectuais e o plano, digamos, da vida. Mas, diante da necessidade de expressar algo (e aqui a "expressão" carrega sim toda a carga patética que a crítica e a teoria literárias às vezes se esforçam em abominar), não nomear, não confessar, pode ser simplesmente torturante. Na hesitação absoluta, entre dizê-lo ou não o dizer, entre o apropriado e o esdrúxulo, o sensato e o apelativo, a tentação do ridículo, a pieguice canalha, caí no poço sem fundo da indecisão, no marasmo da afasia.
Agora a minha tese começa assim: com um escrito de Mirtha Dermisache, com uma rasura, e com uma pergunta sobre o que significa dar a ler uma rasura, um tachado que fala, embora não se conheça a sua língua. Em meu texto de qualificação, o escrito de Dermisache já estava presente, mas como epígrafe final, encerrava o texto cheio de lacunas. Na última página, sem ser explorada, a imagem aparecia como sintoma, mais psicanalítico (devo admitir) do que textual.
Dar a ler um borrão, uma rasura. Por um lado, o desenho gráfico não corresponde a nenhum alfabeto conhecido, ao mesmo tempo há o gesto importante de riscar, tachar aquilo que já não poderia ser decodificado. Em Hilda la polígrafa o La bucanera de Pernambuco, Pizarnik utiliza um neologismo oximoro que condensa o processo radical de escritura que ela desenvolve neste livro e que pode servir também, para além da sua própria elaboração, como uma definição bastante adequada a textos como o da imagem acima: escriborrotear – que Tamara Kamenszain deslindará em escribir + borrar + abarrotar, e ao qual nós poderíamos ainda adicionar borronear. Por muito tempo, era isso o que eu desejava entregar, já que tinha de entregar algo: um borrão, uma página em branco, um parágrafo rasurado, cem páginas rasuradas, uma coleção de citações, uma mesma frase mil vezes repetida, qualquer coisa que fosse a entrega, que se desse a ler, que significasse algo, sem que, ao mesmo tempo, eu tivesse de dizer qualquer coisa, qualquer coisa que se escrevesse em uma língua, toda a língua repentinamente anódina, toda frase de uma hora para outra fútil, desnecessária, sobrante, um dicionário inteiro, toda uma gramática inutilizados por uma só convicção: a de que não vale a pena dizer nada, a de que não há nada a ser dito e a da falta de vontade de dizer qualquer coisa, depois de tudo. A página de Mirtha Dermisache e os procedimentos de poetas e artistas visuais agrupados às vezes sob o nome de escritas insignificantes – um conceito praticado por escritores cujas obras consistem em grafias inventadas, rasuradas, poemas ilegíveis, livros desfeitos, cópias sobrepostas página a página que impossibilitam a leitura ou a mera decifração dos signos e que, mesmo assim, mesmo sendo “textos” completamente ilegíveis, completamente sem significado possível dentro da língua, são publicados, são expostos, são dados a ver –me apareceram como a tradução do que eu gostaria que fosse a minha tese: dizer tudo, sem que uma palavra fosse dita. Não está tudo suficientemente claro?
O que parece é que não, nada nunca está suficientemente claro. “Não falasse eu que ninguém pensa / por si próprio / não tinha que me fazer explicar”, diz um poema de Júlia de Carvalho Hansen. O simples fato de estar no mundo – quem dirá falar qualquer coisa – parece já requerer suficiente explicação. E este é, precisamente, dizem, o trabalho acadêmico, o trabalho pedagógico: a explicação infinita. Explicar o mundo, os objetos textuais, seu funcionamento, suas relações. Rancière, em O mestre ignorante, narra o espanto de Joseph Jacotot ao perceber como se deposita na figura do professor e especialmente na explicação oral a capacidade de fazer entender um conjunto de palavras escritas que, por si só, deveriam dizer algo a quem se propõe a entrar em contato com elas. A esse princípio de regressão ao infinito Rancière chamou de lógica explicativa. E quanto a se fazer explicar? Armadilha das mais cruéis, uma vez que algo ultrapassa a barreira dos dentes. “Nunca es eso lo que uno quiere decir”, diz um poema de Pizarnik; “Después de hablar o de escribir siempre tenía que explicar: – No, no es eso lo que yo quería decir”, diz outro. Impossível seguir o curso de um discurso até o fim, especialmente o próprio discurso, se o fundo não existe. Com isso estão de acordo Vilém Flusser, quem duvida de que exista o algo, objeto da verdade, e Roland Barthes, quem diz que, assim que se pensa, a linguagem se torna corrosiva, revelando o escalonamento infinito de seus graus. E quanto ao silêncio, como explicá-lo? Está tudo bem com o silêncio, contanto que se fale muito a seu respeito, contanto que ele seja conceituado bem direitinho, contanto que ele seja o fundo inacessível, a meta de ouro, um puro silêncio desejado e impossível. O silêncio, segundo Susan Sontag, existe como mito e como termo retórico, mas não existe literalmente como a experiência de um público, tampouco como propriedade de uma obra. Já Levinas dirá que não poder contemplar em silêncio justifica a atividade crítica. Sem falar em ter que explicar que ninguém pensa por si próprio – quantas palavras de outros, quantos outros, as palavras sempre as mesmas, seriam mobilizados numa explicação deste tipo? Entretanto, conhecemos a clarividência com o nome de “autoexplicativo”.
Mas há alguns parágrafos atrás, naquele texto escrito como um começo da tese, eu fui cruel com Alejandra Pizarnik. Decerto, num momento, ler o seu diário, ler os seus poemas dedicados a certas imagens funerárias me pareceu indigesto, frente ao desenrolar real (para mim) da vida/morte. Mas depois, em outro momento, abrir de novo o seu diário, reler a sua poesia completa, se tornou simplesmente insuportável, angustiante, algo com cuja força autodestrutiva e desestabilizadora de qualquer segurança depositada na linguagem eu não conseguia lidar, não conseguia enfrentar. O distanciamento que requer um trabalho de análise textual, o distanciamento que anteriormente me permitia pensar o seu “desejo de não escrever escrevendo” – como define Tamara Kamenszain – como um tema interessante a ser investigado em cruzamento com trabalhos de outras autoras e autores escorreu para algum lugar muito distante da minha relação com a sua obra, na qual eu depositei então uma antipatia terrível. (Engraçado vir essa palavra agora, antipatia, talvez o oposto do expediente de identificação extremamente pueril que provavelmente realizei nesse momento. Engraçado como para não confessar vem do fundo do repertório linguístico uma palavra tão antiquada, que eu mesma não uso há anos, embora a tenha lido recentemente num diário do final do século XIX, e, devo dizer, tenha achado no contexto o seu uso simpático).
Laura Erber relata uma experiência parecida com a leitura de Pizarnik, parecida e oposta ao mesmo tempo. Em 2005, ela realizou uma videoinstalação chamada “História antiga”, em que uma mão sádica põe (e logo retira) sobre uma página da poesia completa de Alejandra Pizarnik um peixe vermelho vivo. O peixe se debate, procura respirar movimentando freneticamente suas guelras; a mão o deixa sofrer por alguns segundos, deixa-o buscar o ar, pular erraticamente, e então o apanha para algum canto que não vemos. Enquanto o peixe salta, divisamos algumas palavras de Pizarnik, um título, pedaços de versos, reconhecemos um poema ou outro. No momento máximo da tortura, a mão tenta decalcar o contorno do peixe sobre a página com uma caneta, o contorno desse corpo, mas a movimentação dele impede que os círculos se fechem, eles vão se entrelaçando, formando uma figura abstrata. Nas últimas tomadas do vídeo, a página é inundada, e os peixes, colocados ali, podem agora respirar e nadar tranquilos, enquanto lentamente a tinta com que se imprimiu o poema vai sendo borrada; o papel vai aos poucos se desfazendo, soltando minúsculos pedaços na água; o texto vai se apagando como um sonho, se tornando uma lembrança vaga, e a mão agora é voluptuosa em colocar um e outro peixe ali, em fazer vê-los nadar (e viver) contra a permanência da escritura. É um vídeo curto, de pouco mais de cinco minutos.
Gostei de ver esse vídeo, que me parecia descrever e metaforizar (uma metáfora bastante real na verdade; não sei como fica o conceito de metáfora no caso de uma experiência-limite, uma performance que parece pôr em jogo a vida de um ser vivo) o sentimento que me acompanhava de que, para viver, talvez fosse necessário fechar o livro; de que, para escrever sobre Pizarnik, talvez fosse necessário esquecer Pizarnik. Em novembro de 2017, Laura Erber publicou um texto sobre sua relação com a obra da poeta e descreveu a realização do vídeo como um modo de “jogar o livro contra suas próprias imagens de regresso e crueldade”. Tendo lido a Poesía completa, organizada por Ana Becciú, mais de trinta vezes em um ano, Laura Erber sentia-se aprisionada nesse livro, tonta e torturada por seu enlaçamento radical entre poesia e morte. Tentar abandoná-lo era se ver abrindo-o mais uma vez, recaindo em sua vertigem insistente. A videoinstalação, então,
era uma resposta ao círculo vicioso de leitura, mas era também um modo de tentar sair do sofrimento da abstração – Pizarnik chega a dizer que é possível morrer por abstração – e tocar as palavras com o corpo, tratá-las como substância. Felizmente, o vídeo teve também um efeito libertador e há muitos anos não o abro.[1]
Para Erber, a questão era como parar de ler o livro, como se libertar desse objeto que parecia mais uma armadilha, um brinquedo perverso. Para mim, ao contrário, que tinha firmado um compromisso de relativo longo prazo com ele mediante um projeto de pesquisa aprovado por uma banca avaliadora e financiado por uma bolsa de pesquisa, o problema era como conseguir lê-lo; como percorrer suas páginas com disposição e serenidade suficientes para ter ideias, para pensar outro texto a partir dele. Para isso seria necessário não enjoar, não me aborrecer, não vacilar a cada pequena leitura, fatalmente interrompida. A questão era como desenvolver, criar, tirar sem saber de onde uma outra relação com essa escrita, já que nesse ponto ela tinha sido atravessada, para mim, por uma onda de angústia, e só. Este texto é ainda parte dessa tentativa.
Ainda no artigo que venho citando, Erber realiza uma leitura da obra de Pizarnik que é talvez a melhor crítica que já li a seu respeito, e gostaria de colocá-la aqui pelo tanto que ela pode falar sobre a natureza de suas tensões e sobre o tipo de consequências que a sua leitura intensiva pode gerar, muito embora eu não vá comentá-la extensivamente, não por enquanto:
A percepção da linguagem como um objeto enfeitiçado não torna Pizarnik uma poeta maquiavélica, que exploraria oportunisticamente o mito romântico e a própria depressão para produzir afinal uma poesia de efeitos, cerebral, feita de meros jogos virtuosos de linguagem. Que o lirismo seja algo distinto de uma poética da subjetividade inflada e autoflagelante e que possa, em certos casos, converter-se numa experiência que margeia a loucura e a perda de si, não faz dela uma experiência livre de efeitos sérios para quem escreve tanto quanto para quem lê. Pizarnik, sendo uma poeta mulher, diferente dos surrealistas franceses, mostra que a fragmentação do sujeito pode se traduzir em uma espécie de desmaio sucessivo, em que a linguagem é a espessura fina que recebe o eu incessantemente em queda da escritora. O que se toca ao tocar a morte com a linguagem? A essa pergunta que ronda diabolicamente seus poemas e seu diário, Pizarnik responde multiplicando os paradoxos que a questão envolve, dando-lhe uma formulação mais difícil: como matar aquilo que nunca teve uma vida plena, em suma, como matar um fantasma?
Como matar um fantasma se torna, pois, a questão. Ou como dar aos mortos o lugar dos mortos – e saber dar aos vivos o lugar dos vivos. Ou, ainda, como matar um fantasma na acepção psicanalítica da palavra, aquela fantasia criada em vigília que pode ir do puro deleite – um romancinho de bolso que pode ser aberto a qualquer momento, em qualquer lugar, como diz Barthes – à projeção de um monstro de expectativa e terror: o fantasma da Tese, por exemplo: do delírio da aprovação e do reconhecimento ao pavor de não conseguir escrever; um romance do imaginário cujas grandes elucubrações volta e meia terminam no fracasso. Para matar esse fantasma seria preciso talvez compreender que a tese está se escrevendo sempre, mesmo que ela esteja sempre por vir, mesmo quando se imagina estar adiando a “verdadeira” tese por falta de tempo, por falta de recursos, por falta de algo qualquer que se julgue como extremamente necessário. Para isso seria preciso talvez aprender com La novela luminosa, de Mario Levrero, com A preparação do romance, de Roland Barthes, mesmo com os poemas de Pizarnik – definidos por ela em seu Diário como fragmentos oferecidos a seus leitores para que se distraiam enquanto ela não escreve a sua grande obra, um romance sólido, um colosso da língua – que a promessa do texto já é o texto, que o jogo com o fantasma é sempre inexato e que enquanto há rascunho há sempre um caminho sendo aberto.
Quando esse sentimento de impossibilidade de seguir lendo Alejandra Pizarnik me angustiava, há um tempo, e eu tentava sair dele, me lembrei de um texto de Roberto Bolaño, “Un narrador en la intimidad”, em que ele utiliza a metáfora da cozinha literária para falar derrisoriamente de seu processo de escritura. Bolaño descreve a sua cozinha literária como um cômodo vazio e sem janelas, que às vezes se transforma num castelo medieval e às vezes toma as proporções de três estádios de futebol onde estão expostos todos os seres vivos de que dispõe ou já dispôs a terra. Como de costume, ele aproveita o ensejo para ditar aquilo que se espera ou não se espera de um escritor – o plágio aparece então como o crime capital –, e finalmente em sua cozinha resta apenas uma figura, um guerreiro que luta a sua luta corajosamente sem esperança de vitória. Esse texto menciona (acredito que pela única vez em toda sua obra) Alejandra Pizarnik, e voltei a ele com a memória assertiva e equivocada, como se provará, de que Bolaño afirmava que, por algum motivo, não desejava de maneira alguma viver na cozinha literária de Pizarnik. Fui atrás do livro em busca de solidariedade. Qual não foi minha surpresa ao redescobrir exatamente o contrário do que minha memória registrara:
Si tuviera que escoger una cocina literaria para instalarme allí durante una semana, escogería la de una escritora, con la salvedad de que esa escritora no fuera chilena. Viviría muy a gusto en la cocina de Silvina Ocampo, en la de Alejandra Pizarnik, en la de la novelista y poeta mexicana Carmen Boullosa, en la de Simone de Beauvoir. Entre otras razones, porque son cocinas que están más limpias.[2]
Além da decepção primeira de não encontrar ali o que eu buscava – um argumento, uma voz amiga endossando e compadecendo junto comigo a experiência sufocante de passar muito tempo dentro da cozinha literária de Pizarnik; além de ser apenas isso, uma menção e nada mais, sequer particularizada ou comentada em relação às outras autoras tão díspares citadas; não poderia ser maior o meu espanto diante da razão alegada. O que significa dizer que as cozinhas literárias das escritoras são mais limpas que as dos escritores? O que pode querer dizer isto além de reafirmar o papel doméstico da mulher, mesmo a intelectual, cuja higiene é brandida como valor máximo do feminino, enquanto os homens podem continuamente se reconfortar em sua fingida desatenção a detalhes da própria sujeira, enquanto esperam por uma mulher que limpe seus dejetos enquanto se concentram em atividades cerebrais, depois de saciada a fome? Não me parece que haja mais ressonâncias nesse motivo.
Não sei se a cozinha de Pizarnik é limpa ou suja. Sei que ela é escura, às vezes é atravessada por uma lufada de vento e de sol, há flores nos cantos que cheiram muito, mas é um lugar para pouco respiro, para muita concentração, uma cozinha extremamente organizada para um objetivo, com poucas distrações, uma cozinha para oficiar cerimônias. Não é grande, é aconchegante o tamanho, é atrativa e perigosa. Em vez de seres vivos, vozes, aparecidos, sombras de afogados. Há poucos objetos, eu suponho, memórias antigas, a lembrança de um jardim inalcançável, um sonho esquecido que volta e se dissipa rapidamente, deixando apenas um traço no papel. O meio-dia às vezes se confunde com a meia-noite, mas quando é noite parece que há uma faca que brilha na escuridão.
Eu permaneci tempo demais tentando me acostumar com essa cozinha.
Prefiro atualmente a cozinha de Ledusha (por exemplo), onde há toddy em vez de tédio; onde certamente há alguns restos de mingau empelotado numas panelas espalhadas, e talvez até mesmo um grande clássico afogado na pia, pois lavar a louça depois de ir à praia, depois de ouvir um disquinho girando na vitrola (pode ser Ave Sangria), depois de sondar a tese bordada por um gato, não parece definitivamente a coisa mais inadiável do dia.
O que é um começo? Num pequeno texto em prosa, “El poema y su lector”, Pizarnik precisa a mecânica entre destinação e sentido com que opera, explicando que, quando termina um poema, ela não o termina, mas o abandona, não sendo já o poema pertencente a ela. A partir desse momento, em que o poema apenas existe, o triângulo ideal composto por autora, poema e leitor dependerá exclusivamente deste último, o único capaz de terminar o poema inacabado, de reaver seus sentidos múltiplos e de atribuir-lhe outros, inesperados. “Terminar equivale, aquí, a dar vida nuevamente, a re-crear”, ela diz. Terminar, então, pode ser começar, dar uma nova vida ao poema, uma vida própria e fluente que já não depende de qualquer ligação intrínseca com a sua autora, com o que ela pensou, com o que quis dizer. Assim como terminar pode ser começar, nascer também pode ser morrer, e morrer, nascer, na dinâmica sempre nascente – sempre promessa – e sempre morrente – sempre crepuscular – da poesia de Pizarnik, em que às vezes se nasce para a morte, e às vezes se nasce dando à luz a si mesma, parindo-se esforçadamente do fundo do próprio útero.
O que é um começo? “Gostando de encontrar, de escrever começos, ele tende a multiplicar esse prazer: eis porque ele escreve fragmentos, tantos começos, tantos prazeres (mas ele não gosta dos fins: o risco de cláusula retórica é grande demais: receio de não saber resistir à última palavra, à última réplica)”, diz a versão barthesiana.[3]
O que é um começo? Esta pergunta é também o título de um poema de Marília Garcia, no qual a poeta relata ter descoberto, através de uma tradução de um poema seu feita ao francês, que fechar, em português, pode significar abrir.
o que é um começo?
[...]
encontrei uma tradução da inês oseki-
depré de um poema do meu livro
chamado “rue de fleurus”
naquele momento
entendi algo sobre o começo
entendi que fechar em português
pode significar abrir
mas isso depende você me diz
e eu pergunto
mas o que seria um começo?
pensando que fechar para mim
só podia ser o fim
sem abertura sem deslocamento sem nada [além
no mundo daquele poema
e lembrando do dia em que o escrevi
me convenço de que o fim era sem começo
começo era outra coisa ainda estou aprendendo
mas na semana passada
ao ler a tradução da inês
entendi que em português
fechar pode significar abrir
que fechar pode ser sim um
começo só que a vida não disse isso
quando precisei
talvez porque você estivesse vivendo
em outra língua ela diz
talvez não sei bem
de todo modo na semana passada
ao ler a tradução da inês lembrei que
traduzir um texto é um modo de ler
com uma lupa na mão
e que nessa tradução
a inês me mandava
suas observações-de-lupa
nesta tradução a inês oseki dizia
que o vendedor de crepe
tinha acertado o negócio
(o acerto é um começo
certo? você diz)
mas no poema eu dizia
que o vendedor de crepe
tinha fechado o negócio
(aqui também
fechar o negócio
podia ser um acerto
chegar a um acordo)
podia ser mas no poema
eu queria dizer que o vendedor de crepe
tinha falido que tinha fechado a loja
fechar era literal uma porta em movimento
pronta para bater
isso era o fim deserto falência
fechar poderia ser positivo e significar
um acerto
mas ali eu queria dizer outra coisa
queria dizer que a forma de uma
cidade muda mais rapidamente
do que o coração dos mortais
queria dizer que
embora meu coração ainda buscasse
uma lembrança qualquer
um vestígio um sinal que pudesse
ser recomeço
ao chegar no jardim
a loja de crepe já não existia
tinha fechado suas portas
eu queria dizer que embora buscasse
começar fechar ali era o fim[4]
Fechar, aqui, é o fim de algo e é também o começo de algo. Terminar e começar, morrer e nascer, fechar e abrir. Por sorte, não apenas o senso comum, mas também a língua, em sua imprevisibilidade, dá expressões em que pares tão opostos se tornam intercambiáveis. Estou terminando com Alejandra Pizarnik. Estou começando com Alejandra Pizarnik. Estou saindo e entrando, tudo ao mesmo tempo, nesse texto que é uma introdução, mas que a cada parágrafo se parece mais com uma conclusão. Talvez seja sempre assim, e talvez seja por isso que em muitos trabalhos acadêmicos a conclusão diz exatamente o mesmo anunciado na introdução (a introdução e a conclusão também seriam intercambiáveis, afinal): é preciso abrir e fechar, é preciso saber entrar e saber sair, é preciso, se possível, prever o caminho, estabelecer um ponto de chegada, um destino fatal. Não sei ainda o que será na conclusão. Estou tirando Alejandra Pizarnik para dançar, e a dança é, sabemos, uma atividade sem objetivo, somos levadas no embalo da música, sem hora certa para começar, sem hora certa para acabar. ∎
Edição: Luiz Eduardo Freitas
Clarisse Lyra é mestra em Literatura Hispano-Americana pela USP, poeta, tradutora e revisora.
Mirtha Dermisache,
Fragmento de Historia, 1974