Todos os dias vão ao seu fim
João Moraleida
I
Se no adro da matriz
onde cresci
ouvisse como
um morto que suplica de seu túmulo,
a voz da criança na mesma
intensidade
do verso
que havia,
seria pelo sopro
a verdade conduzida.
O ar daquela cidade
guarda antes de sua libertação
um barroco fora do tempo,
como se
como se bach compusesse
bradenburgo
aos pés do cruzeiro
e minha voz de criança
suplicasse a ele
que compusesse
o som para ouvirmos todos felizes
e juntos caminhássemos
pela cidade
enquanto sem nunca esgotarmos,
nunca,
energia sem fim
déssemos um grande abraço
como se
como se
minha infância fosse música e
minha voz dissesse
para nunca abandoná-la.
e então, como num fechar de
portas nos dias de ventania,
toda multidão que
descesse
da igreja se inclinasse
para a serra,
como se
como se
um peso fastigasse
suas costas,
e então se
faria um silêncio,
silêncio das procissões
ante o fim da toada
da bandinha felliniana,
meus queridos,
eu poderia chorar,
onde aprendi a amar
e a odiar,
onde assinei sem redenção
o contrato
com o mundo,
como se
como se
fosse a terra
um grão fino
para respirarmos nos
dias tristes.
minha voz de criança
soltaria a gargalhada,
lamento feliz,
como se
como se
a igreja sem tons solenes
fosse apenas o que é:
o edifício robusto
de uma empresa
dificultosa,
construída como
compõe-se
na partitura o bradenburg de bach,
ou como se
como se
tem as lágrimas secas da vida adulta.
II
Na descida do ônibus pelo viaduto mais alto da cidade.
Em qualquer caminho
para o trabalho
para a lanchonete
para lugar algum
com ou sem seu amor,
qualquer lembrança haverá de
ser tão longe e tão palpável recordação.
E deverá ser como um guardanapo soprado pela ventania
ou sua primeira paixão,
seu primeiro beijo
sua primeira mentira contada
à mãe enquanto escorriam as suas lágrimas.
E deverá vir feito uma prece, a recordação.
Será o primeiro corte nos dedos
enquanto ajuda na cozinha
ou sua primeira excitação.
Deverá como um altar ser estendida durante a
chuva medonha, em que as toalhas e as colchas puídas ficarão molhadas no varal,
também o velho teto de madeira
será furado por goteiras.
Conhecerá qualquer ideia do trágico, ainda
criança.
Conhecerá enterros, velórios e velhos de
algodões brancos nas narinas, mas não lhe afetará, não como
o medo e a vergonha de passar por aquele por quem você se enamorou: são
duas crianças.
A recordação virá, quando adolescente
feito uma pedra que tapa a fenda do canto da sala,
virá como a primeira bebedeira
que fará com que seu pai levante tarde da noite
para ajudá-lo.
Virá como vem a noite nos dias de calor,
virá seca enquanto pode ainda dizer a sua mãe o quanto
se é superior.
A recordação da vida adulta
será como a esponja de todos os anos,
será o sino há muito caído em desuso,
será aquele homem bonito que sorri envergonhado e de soslaio quando você o
observa,
será uma espécie de saudade progressiva,
porém satisfeita consigo mesma,
ou nada será.
E então, somente aí,
no toque da música que na infância ouviu num sábado
comum a todos e especial para você,
verá como se o tempo rodasse todas suas fitas coloridas
ao redor do cilindro
e a lua desce junto à grama uma
risada bárbara.
Virá o choro – como recordação antiga
de que esteve um dia sozinho
e mesmo assim pôde ser pirata animal marinho,
super-herói boneco
boneca, seu pai e sua mãe.
Depois de tudo isso virá, talvez
a sombra de algum amor possível
e junto a ele o sorriso.
III
E então,
todos os dias vão ao seu fim,
martelos tinc tanc
nas construções,
e odores e suores
umedecendo
todas as cidades.
mais fácil ganhá-las
que perdê-las, enquanto
todos os dias vão ao seu fim
o som das palpitelas
de um coração juvenil,
um gazel de lorca
rabiscado de caneta azul ou
mesmo o navio ancorado
na folha em branco,
todos os dias vão ao seu fim.
o barqueiro preso ao mastro
de seu navio imaginário,
peixes que rente às redes
se agarram,
tempestades e mortes
no pequeno lago,
mas todos os dias vão ao seu fim.
o pesadelo que acorda
a criança e mesmo sua
mãe ao abraçá-la, monstros
sem rostos e na noite
seguinte a paz como pressuposto,
sim, sim,
todos os dias vão ao seu fim.
a camada de poeira
e o pano que a arrasta
limpa, esfrega,
nas mãos do limpador pateta
que ri de seu patrão:
acordando 12h, é o senhor esteta?
mesmo solar,
todos os dias vão ao seu fim.
os casais que no sofá se esfregam,
os pais trabalhadores, fora de casa,
o garoto afortunado,
o namorado desamparado,
a filha bêbada e seu primo
notívago, e talvez atordoado,
não tema, pois
todos os dias vão ao seu fim.
todos os dias vão ao seu fim,
quer entenda, ou não.
e queira, por que não?
queira, sim?
pois
todos os dias vão ao seu fim. ∎
João Moraleida tem 22 anos. Nascido em São Gonçalo do Rio Abaixo, mora em Belo Horizonte. Geógrafo pela Universidade Federal de Minas Gerais. Próximo da literatura desde criança, quando
frequentava a biblioteca ao lado da sua casa e ouvia as diversas histórias contadas pela mãe e pelos avós.