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eclética, plural e de quarentena

Carne queimando, cinzas, carvão e sangue: Qual a novidade? 

Joilson Santana Marques Junior

Exala um cheiro acre, diretamente do palácio. É a carne maltratada pela espátula na grelha de churrasco. 30.000 quilos carnes descendo as churrasqueiras subterrâneas envolvidas em árvores mortas não dizem nada, por que diriam?

Falamos de um lugar que vê morrer milhares de carnes negras (aquela mais barata do mercado) todos os anos, e não há nada. Uns dizem: são carnes estragadas, de segunda, sem qualidade. O preto do carvão é tragicamente o preto da carne. Nesse caso, carne e carvão têm a mesma origem, gente negra nascida para morrer, gente negra arregimentada para matar sua própria gente, há tanto tempo que pensamos não haver mais responsável por atear fogo ao carvão silente.

Esquecemos que o churrasco tem responsável e participantes, perdemos a memória de quem são os comensais convidados para essa festa da morte, apagamos inclusive o rastro de que essa farra não é nova, não é de hoje que aqui se consome carne humana, viva e morta. Qual a novidade agora? O cheiro subindo do Alvorada. Ora, mas quem são as pessoas desse banquete? Acaso não eram assim as festas nas casas grandes, nos palácios? Sobre corpos esquartejados, dançava-se a aclamada valsa europeia sobre a carne-morta-ornamento dos salões. De quantos açoites eram feitos os pratos refinados à imitação europeia, quantos dedos foram partidos para que o piano tocasse “peças mais eruditas”?

Qual a novidade? Qual a novidade? Será que há de fato uma novidade? Ou, antes, para quem é a novidade? Vocês já pensaram sobre para quem essa realidade é tão novidade? Vemos a execução de um banquete cuja orquestração se deu muito anteriormente, quando com orgulho programas de TV, com seus pálidos apresentadores, gritavam “bandido bom é bandido morto!”, “esse vagabundo vai ter o que merece!”, “escracha!”, “esculacha!”. Me digam qual é a surpresa.

Quando nossos “bons” e velhos templos cristãos prodigalizam feitos de fortuna enquanto veem seus fiéis torrando na brasa ardente, qual a surpresa? De onde vem o choque? Será novidade? E, lá atrás, quando os padres iam benzer as lautas refeições enquanto sorriam amarelo para as mãos cativas obrigadas a lhes servir? Será mesmo que vivemos um tempo estarrecido? Ontem mesmo víamos púlpitos inchados de ódio e banhados em sangue apalavrando a morte contra seguidores do demônio (que se tornou marketing management da fé cristã), púlpitos cuja mira inquisitória tem sido aqueles que envergam suas cabeças para a cosmologia de sua ancestralidade, cuja origem marca a história de milhares, ascendência e digna pertença. Mas isso é novo?  

Lá atrás, quando os seus homens alvos, tão admirados, aterrissaram como aliens em terra alheia, para levar a boa-fé da sua sacerdotisa igreja, não tiveram dó nem piedade de matar ou estripar, de fazer sangue lavrar a terra. Os demônios, os sem alma, são sempre os mesmos. Os que precisam ser salvos e purificados pela dor são sempre os mesmos. O que é o sangue escorrendo da grelha manchando o carvão, senão o velho dilema daqueles que serão usados para apagar os seus até se apagarem, com sua superfície enleada de sangue, sem que, contudo, se perceba quem está em volta da carne queimando?

É curioso como, no arrastar dos séculos, fez-se questão de se falar de “canibais indígenas”, “canibais africanos”; curioso como nunca falamos desses outros canibais. Acaso não devoram corpos, carne, ossos? Acaso não se ouve hoje, no estalar das pedras ferventes abaixo das carnes, aquele mesmo estalar que ressoava da chibata (instrumento tão endeusado que eu mesmo ouvi há pouco tempo: “quero te bater com uma chibata”)?

O que será atual nesse festim diabólico (para ser cristão!, já que diabo realmente só é bom como bode expiatório)? Aliás, no filme de Hitchcock, é uma gente grã-fina, da alta e intelectualizada classe que come e mata. Parece que essa prática não é muito nova, talvez o estranho ali seja porque se matou um “igual”, estará aí a origem desse nosso sentimento, de estarmos vendo um fato novo, sem nenhum precedente, talvez. Porque para todos que são o outro, marcado a ferro e brasa e servido na ágape das elites brancas locais, não há novidade.

Então só podemos dizer que a carne está assada, bem passada. O carvão já virou cinza e resta jogado a um canto para virar lixo. Apenas sobra a ainda leve brisa de uma fumaça de perfume estranho, que se assemelha a um outro não tão distante dos fornos de Hitler. 

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Joilson Santana Marques Junior é assistente social, doutorando em Serviço Social na UFRJ e, principalmente, um enamorado das artes que tenta se aproximar delas.

joutromundo2000@gmail.com

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