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As versões para o português das obras consultadas, seja para citação, paráfrase ou simples menção no texto acima são:

 

Ficções, de Jorge Luis Borges, tradução de Davi Arrigucci Jr para a Companhia das Letras (2007);

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Segunda consideração intempestiva – da utilidade e desvantagem da história para a vida, de Friedrich Nietzsche, tradução e notas de Marco Antonio Casanova para a Relume Dumará (2003);

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Mrs Dalloway, de Virginia Woolf, tradução de Claudio Alves Marcondes para a Cosac Naify (2012);

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Uma carta de Lord Chandos, (também) de Hugo von Hofmannsthal, tradução e notas de Márcia de Sá Cavalcante Schuback, apareceu no número 8 (janeiro-junho de 2010) de Viso: cadernos de estética aplicada (publicação vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal Fluminense), que pode ser acessada em http://revistaviso.com.br/pdf/Viso_8_Hofmannsthal.pdf;

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O aforismo de Nietzsche sobre a memória (§122 de Opiniões e sentenças diversas) consta do segundo volume de Humano, demasiado humano, tradução, posfácio e notas de Paulo César de Souza para a Companhia das Letras (2008);

 

Elizabeth Costello, de J. M. Coetzee, tradução de José Rubens Siqueira para a Companhia das Letras (2004).

 

Ao farol [To the lighthouse, também vertido como Rumo ao farol e Passeio ao farol], de Virginia Woolf e o poema “La Pythie” [“A pítia”, não conheço tradução recomendável para o português], de Paul Valéry, foram consultados no original.

As palavras e as pulgas 

André Martins

 

"Funes, o memorioso" é dos contos mais conhecidos de Jorge Luis Borges. Nessa narrativa prenhe de sugestões filosofantes sobre o tempo e a memória, o perfil da personagem-título ali traçado parece ecoar, em particular, algumas reflexões de Friedrich Nietzsche em torno desses temas. Ireneo Funes combina uma memória prodigiosa com uma condição de crônica impotência (ainda jovem, Funes caiu de um cavalo, ficou paralítico; desde então permanece num quarto onde passa a maior parte do tempo de olhos fechados). O nexo causal entre uma coisa e outra é sugerido, mas não explicado; de todo modo, a atmosfera alegórica do texto nos conduz para a ideia de que a memória, se exercitada até suas últimas consequências, impede qualquer tipo de ação. O mesmo espírito pode ser encontrado nas alegorias apresentadas por Nietzsche nas primeiras páginas de sua Segunda consideração intempestiva, subtitulada "Da utilidade e desvantagem da história para a vida". (O fato de Ireneo Funes ser referido, no início do conto, como um “precursor dos super-homens” soa, à medida que a história avança, amargamente irônico, além de ter o efeito de uma senha a partir da qual se nos desvela todo um repertório de ideias, imagens e estilismos nietzscheanos que carregam a atmosfera do relato). A cena apresentada por Nietzsche no começo de seu famoso texto sobre a história é meio séria, meio divertida: um homem pergunta algo a uma ovelha. Segundo um narrador que presumimos portar a voz do autor (os leitores mais contumazes de Nietzsche sabem que nem sempre é assim, até porque o ser ou não ser do “eu” raramente é a questão), a ovelha quer responder, mas esquece o que teria a dizer e segue em desmemoriado idílio. Por isso, lemos, o humano inveja o animal. O memorioso de Borges poderia servir aqui como oposto simétrico da ovelha. O humano, condenado à historicidade (à necessidade de lembrar para tornar o agir um devir e não um gesto vazio) mas dotado de uma memória limitada, se encontra em algum ponto entre Funes e a ovelha, e o texto da Segunda consideração se demora algumas vezes em torno do problema de encontrar um ponto ideal entre um extremo e outro, além das vantagens e desvantagens dos modos com que podemos lidar com nossa historicidade.

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A explicação do nexo entre historicidade e capacidade de ação se dá, em Nietzsche, por meio da metáfora do conhecimento histórico como área de um círculo em torno do qual se traça um horizonte. Por um lado, é esse conhecimento que nos possibilita significar nossas ações – caso não o tivéssemos, levaríamos a existência dos animais, e Nietzsche parece mesmo aproximar aqueles que levam uma vida sem qualquer consideração pelo passado aos animais. Por outro, o excesso de conhecimento histórico nos leva a um estado de perplexidade: conhecer todo o passado é conhecer toda a sua grandeza, todos os obstáculos que se levantam contra cada tentativa de agir de forma consequente; perceber que, ao fim e ao cabo, estamos perdidos de antemão – que a condição humana é trágica. Quem se ocupa sem cessar de saber historicamente só pode, na melhor das hipóteses, louvar ou imitar os grandes do passado. Esse é o traço dominante da “cultura histórica” do fim do século XIX de que Nietzsche se lamenta ao longo do texto. Todos aqueles que foram alguém na história, gente da qualidade de Alexandre, Galileu e Shakespeare, só puderam ser o que foram porque lograram esquecer o que estava por trás (e diante) de si. O valor de uma época se dá pelo que há de singular em sua cultura; desse ponto de vista, o tempo de Nietzsche era bastante medíocre, pois sua singularidade seria, a seu ver, uma fixação com velharias. Se queremos fazer algo de novo, precisamos nos desprender dessas velharias; se Nietzsche pode valer algo para nós, talvez seja bom que o entendamos de um modo no qual ele mesmo não se reconheceria.

 

Voltemos a Funes. Desde o acidente depois do qual sua memória, já proverbial, se torna quase perfeita, Funes não faz nada, só se lembra. Na verdade, há algumas coisas que Funes faz, e que lhe dão um pequeno espaço de manobra ante seu horizonte excessivamente ampliado: Funes estuda (até onde sabemos, línguas, história e história natural) e oferece algumas de suas memórias e pensamentos a ouvintes. Se perguntado, pode informar sobre as formas das nuvens austrais do amanhecer de 30 de abril de 1882; lamenta que seja considerado geralmente aceitável que o cachorro das três horas e catorze, visto de frente, e o das três e quinze, visto de perfil, serem ambos abarcados pelo termo cachorro. Talvez a ovelha de Nietzsche seja como Funes, mas com uma memória um pouco melhor. Talvez ela se lembre bem demais para considerar aceitável falar o que quer que nossas palavras imperfeitas conseguem significar – sua afasia pode ser simplesmente a consequência de um grau mais desenvolvido de compaixão para com um mundo que as palavras pretendem, com tosca e violenta presunção, representar. Funes ainda não chegou aí. O narrador nos explica que seu quarto é escuro o bastante para que ele não sucumba diante da profusão de informações oferecidas pelo mundo exterior – para que Funes seja mais do que um animal. Continuar procedendo normalmente, porém, significaria perder a disciplina do pensamento. Funes parou, e assim pôde, pelo menos, continuar a ser ele mesmo. De todo modo, a existência memoriosa de Funes não durou muito. A crer naquilo que nos afiança o narrador, sua memória perfeita implicava uma incapacidade de desenvolver qualquer tipo de pensamento para além de um nível bastante primário: como não é capaz de esquecer, Funes é incapaz de abstrair, de hierarquizar conhecimentos, de dar a partida no movimento do pensar. A seu ver, isso que chamamos de pensar não passa de rude e mendaz insensatez; pensar, aprendemos pelo contraexemplo de Funes, é esquecer. Se entendermos história como memória, Funes é uma boa metáfora para o que certas más línguas costumam chamar de indigência teórica da ciência da história. Outra vez podemos invocar Nietzsche, em outro livro, quando afirma que “alguns não se tornam bons pensadores porque sua memória é boa demais”.

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O medo, ou pelo menos uma vertigem ante a possibilidade da perda do rumo do pensamento, ou da tendência da linguagem a  perder capacidade de ordenar o mundo, é um problema bastante explorado na melhor literatura da primeira metade do século XX, nem sempre sob juízos exclusivamente pessimistas – pensemos, para um exemplo menos transtornado, nos procedimentos narrativos que marcam Mrs Dalloway ou Ao Farol, nos quais a voz narrativa enquadra o acontecer sem se subordinar, ou vinculando-se apenas de forma rarefeita e inconstante, a um ponto de vista claramente atribuível a alguém, nem mesmo ao hipotético narrador onisciente da prosa realista do século anterior. A lição do conto sobre Funes, segundo uma leitura mais convencional, parece ir num sentido conservador da ordem e da capacidade de ação diante da infinidade da potência significadora das coisas – a não ser que imaginemos que Funes, ou a Biblioteca de Babel, sejam criações de um estado de ânimo tranquilo, de um maravilhar-se diante da amplidão e da estranheza dos universos que cada uma encerra. Perplexos ante essas visões radicalmente diferentes da realidade, vamos começando a suspeitar que noções básicas como a unidade e soberania do eu não passam de ficções convenientes ao funcionamento de um certo sistema de metas para a existência – de seu próprio ponto de vista, o único possível. Narrativas como essas nos mostram que a linguagem dispõe de brechas que nos permitem desconfiar da solidez dessa certeza. O conto sobre Tlön, do mesmo Ficções de Funes, expõe, ao traçar os contornos de uma cultura imaginária, a estreiteza com que consideramos nosso sistema de representações do mundo como necessário e desprovido de alternativas. Ali é questionada, rápida e sugestivamente, a primazia da pessoa na organização de todo o discurso: em Tlön, quem recita um poema de William Shakespeare é, pelo tempo em que disso se ocupar, William Shakespeare. Nas longas paráfrases que W. G. Sebald faz de “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” em Os anéis de Saturno, torna-se difícil distinguir se quem fala é Sebald, Borges ou alguma voz intermediária. Talvez isso importe pouco – se seguirmos o espírito de Tlön, não há dúvida de que não importa nada. Noutra ficção do século XX, de redação anterior em quatro décadas às Ficções de Borges, encontraremos em estágio mais aprofundado e perturbador esses problemas que, em Funes e Tlön, aparecem de forma ainda liminar.

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A carta de Lord Chandos ao filósofo Francis Bacon, escrita em 1902 pelo poeta austríaco Hugo von Hofmannsthal e datada de 22 de agosto de 1603, chega a boa parte de seus leitores atuais por intermédio da excelente fanfic que J. M. Coetzee insere ao final de seu Elizabeth Costello. Lord Chandos, jovem nobre que andara se aventurando na poesia, recebe do mais eminente filósofo da Inglaterra uma carta, na qual é instado a explicar por que parou, há algum tempo, de publicar seus versos. Na resposta, um tour de force de umas dez páginas, quem lê se vê subitamente obrigado a representar o papel de um assombrado Francis Bacon. Chandos descreve, em poucas páginas, como, após uma série de pequenas epifanias, transformaram-se radicalmente seus modos de vida e pensamento. Isso implica, entre outras coisas, o abandono das formas convencionais de comunicação. Por mais que gostemos de flertar com filosofias irracionalistas (como a de Nietzsche), somos jogados por Chandos na posição de sóbrios sistematizadores, chamados a salvar um homem claramente inteligente, mas que se perdeu em devaneios. É difícil resistir, ao final da leitura, à pergunta: será que seríamos capazes de salvá-lo? Podemos nos reconfortar diante do fato de que Lord Chandos nunca existiu, nunca escreveu essa carta, e de que não somos Francis Bacon. No entanto, enquanto lemos o pseudo-Chandos, é quase impossível não ser Francis Bacon, num sentido puramente passivo: somos atravessados por uma urgência em responder algo ao poeta desvairado, sentimos ainda a falta dos versos que nunca poderemos ler. Na verdade, se lermos a carta com atenção, percebemos que o poeta não nos pede ajuda alguma. É com uma serenidade arrogante que ele nos informa que sua condição corresponde a um patamar superior do entendimento: “a linguagem na qual eu seria capaz não só de escrever mas também de pensar não é nem o latim, nem o inglês, nem o italiano, nem o espanhol, mas uma linguagem na qual as coisas mudas por vezes falam para mim e na qual, e talvez só no túmulo, tenha de justificar-me diante de um juiz desconhecido”. A capacidade de se comunicar com os humanos se perde, mas, em troca, Lord Chandos surpreende em si e sentimento de uma profunda sintonia com o cosmos – o brilho das palavras dá lugar ao das coisas.

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A loucura de Lord Chandos talvez seja, pensando bem, uma modalidade extrema de lucidez. Ireneo Funes, mais um imbecil superdotado do que um louco, não vai muito além de ser uma figura curiosa, talvez até fascinante. Philip Chandos, por outro lado, apresenta ao longo de sua exposição argumentos pelos quais o leitor pode se sentir contemplado; e no entanto sabemos que não podemos fazê-lo plenamente, não se quisermos preservar nossa sanidade. Funes reclama das ficções e abstrações da linguagem cotidiana, mas não questiona as próprias razões ou a constância de sua pessoa; Chandos suspeita já não ser o mesmo ente que outrora escrevia versos – e logo mais rejeita essa suspeita, pois não passa de vazia retórica. O significado dessa rejeição é mais profundo do que parecerá num primeiro momento. Num dos episódios iniciais de seu desvario, Philip se vê incapaz de executar uma ação solicitada pelo mais pedestre bom senso: ao ver sua filha mentir, Chandos quer repreendê-la e ensinar que mentir não é certo. Antes que consiga terminar de fazê-lo, porém, Chandos interrompe seu discurso no melhor da frase (imagine-se uma frase de poeta!), pois os conceitos que jorram de sua boca lhe parecem brilhar com força excessiva e não caber no reduzido espaço de um sermão para uma criança; nos dias subsequentes, entrega-se a devaneios em torno da insuficiência dos juízos e conceitos que fazem funcionar seu princípio de realidade. Pouco a pouco, os enunciados estruturantes da vida cotidiana vão se tornando insuportáveis: “tudo isso me parecia tão incomprovável, tão mentiroso, tão cheio de buracos quanto possível”, diz Chandos, sobre proposições banais do tipo “tal coisa se passou bem ou mal para fulano ou beltrano; o delegado N é um homem mau; o pastor T é um bom homem”, e assim por diante. Se entrarmos plenamente no universo ao qual a carta nos convida, não apenas somos Francis Bacon, mas somos um Bacon com medo de se tornar Lord Chandos. Talvez seja prudente manter certa reserva diante da sedução de suas vertigens. Segundo seu próprio parecer, mesmo depois de sua singular transformação, o poeta logra manter certa aparência de normalidade, administrando suas terras e seus criados (ele suspeita que sua esposa já tenha percebido algo). Acreditar nisso fica um pouco difícil depois de, a certa altura, Philip nos revelar, antes do relato de uma de suas epifanias, que o que irá narrar ocorreu durante a limpeza de um sótão. Essa tarefa, ele teria executado após receber “ordens” de alguém, não sabemos quem. Para além do disparate de receber comandos onde é senhor, é no mínimo curioso que mesmo um visconde exemplarmente dedicado a sua propriedade se envolva em semelhantes atividades. Chandos pode já ter sido relegado, talvez pelos próprios criados, ao tratamento que se costuma dar aos idiotas.

 

O percurso de sua loucura não é casual. Quando ainda compunha versos, Philip imaginava poder desenvolver uma forma que, oposta a artimanhas retóricas, desvendasse mitos, epopeias e outras narrativas antigas, “forma da qual não se pode mais dizer que ordena a matéria, porque atravessa e penetra a matéria, criando ao mesmo tempo e de uma só vez poesia e verdade, um jogo de reflexos e forças eternas, algo tão magnífico como a música e a álgebra”. E, de fato, como que brotado das páginas de Salusto, o conhecimento dessa forma fluía no poeta, como promessa. Como lembra a tradutora do texto para o português,  Salusto está entre as figuras da literatura clássica que mereceram rasgados elogios de Nietzsche; já o binômio Dichtung und Wahrheit [poesia e verdade] é exatamente o título da autobiografia de Goethe. Lembremos que a redação “original” deste texto se deu em alemão: são essas duas piscadelas de Hofmannsthal para seus leitores (deve haver muitas outras), que entenderão que o jovem Chandos continha em potência muito do que a inteligência alemã viria a realizar nos anos subsequentes, do romantismo à sua crise. Possibilidade irrealizada, pois a obra que imaginava, significativamente intitulada “nosce te ipsum” [conhece a ti mesmo], nunca foi escrita. Ocorreu algo diferente: Chandos pula esses estágios para ser um precursor ficcional daquilo que Hofmannsthal, seu datilógrafo, de fato é: um vanguardista fin-de-sciècle, a um só tempo nostálgico da tradição (ou, de modo mais geral, da palavra) e desconfiado de sua insuficiência. Depois de ter acreditado na possibilidade de uma forma capaz de, além de ordenar as coisas, penetrá-las, o missivista abandona qualquer compromisso com a escrita – não sem antes redigir essa espantosa carta em que se despede das palavras. Na mente de Chandos, inverteram-se os valores atribuídos aos polos da cognição: quando ainda se acreditava capaz escrever seu trabalho enciclopédico, imaginava que toda verdade não passava de símile e parábola (de poesia?); desde algum tempo, porém, tal ideia lhe parece horrivelmente mentirosa (a linguagem não passa, em seu novo modo de ver, de uma enorme coleção de mentiras). A verdade vai se transferindo dos signos para as coisas em si, numa migração que lança tormentas sobre seu palco, a consciência. A linguagem humana se revela, pouco a pouco, inabitável.

 

Primeiro, torna-se difícil travar discussões sobre temas elevados; depois, o missivista já não consegue ralhar com a filha de sete anos; logo mais, diz Philip, seu pensamento perde toda ordem: “tudo desintegrava-se em pedaços; pedaços em mais pedaços e nada mais conseguia ser abarcado por um conceito. As palavras isoladas inundavam-me; aglutinavam-se em olhos que me fitavam e para os quais via-me obrigado também a fitar: turbilhões, são as palavras. Sentia vertigens ao olhar para elas, girando sem parar e através das quais só se consegue chegar no vazio.” O texto de Philip não deixa de ser algo inverossímil: o autor escreve bem demais para quem não consegue mais pensar. O ex-poeta tenta então ler alguma filosofia clássica para devolver a disciplina a seus pensamentos; diante da harmonia dos textos de Sêneca e Cícero, porém, Philip sente um profundo estranhamento: o discurso é terrivelmente fechado ao mundo, só diz respeito a si mesmo. Aceitando seu novo modo de ver as coisas, Philip tenta explicar a vida que vive desde que desistiu das palavras; porém, logicamente, elas agora lhe faltam. A tentativa de descrição é fascinante (Chandos se desculpa por seus “exemplos lamentáveis”): “Um regador, um ancinho abandonado no campo, um cachorro ao sol, um cemitério de igreja, um aleijado, uma pequenina casa de camponês, tudo isso pode se tornar a jarra de minha revelação”. Sobre um arrebatamento que tem diante da luta de um bando de ratos contra a iminente morte que ele próprio lhes impõe com veneno, Chandos diz: “Tudo era em mim: o ar frio e úmido do porão, cheio do odor doce e picante de veneno, os gritos de morte ressoando nos muros cheios de musgo, as convulsões de corpos impotentes revirando-se uns sobre os outros, desesperos caçando uns aos outros, a busca enlouquecida de saídas, o olhar frio de raiva quando dois deles colidem numa rachadura bloqueada.”

 

Durante aqueles segundos, tudo era em Philip Chandos. Ao final do poema “La Pythie”, de Paul Valéry, lemos que a linguagem é a voz das florestas e das ondas. Lemos também que são as belas correntes da linguagem que mantêm cativo um deus que se perdeu na carne. Seria o caso de libertá-lo, convidando a linguagem a se retirar? Eis o que Chandos tem a dizer sobre Deus em seu desvario: “Em mim os mistérios da fé condensaram-se numa alegoria sublime que paira sobre os campos de minha vida como um arco-íris iluminador, num longe sempre constante, sempre pronto a ceder quando me der na telha de correr e esconder-me nas dobras de meu agasalho”. Valéry também foi um pouco Lord Chandos, quando escrevia “La Pythie”. Como diz o próprio Chandos, não é que tenha desistido de toda e qualquer linguagem; o que ele quer é falar com a voz das florestas e das ondas. Sair da carne e se reencontrar como Deus. Figuração, talvez, de uma ascensão aos céus, de uma reconciliação com o Verbo e com a eternidade – figuração no fim das contas cristã, atualizada, da morte. Lord Chandos não quer ser salvo, pois vê que seu desvario é salvação. Antes que fiquemos excessivamente animados com essa perspectiva, convém dar voz ainda a Elizabeth, Lady Chandos, e terminar este ensaio com algumas palavras de sua própria carta a Francis Bacon, transcrita por J. M. Coetzee à guisa de epílogo a Elizabeth Costello:

 

Não fomos feitos para a revelação, quero gritar, nem eu, nem o senhor, nem meu Philip, para a revelação que queima o olho como ao olhar para o sol. Salve-me, caro Senhor, salve meu marido! Diga a ele que o tempo ainda não chegou, o tempo dos gigantes, o tempo dos anjos. Diga a ele que ainda estamos no tempo das pulgas. Palavras não o atingem mais, mas pulgas ele entenderá [...] Latim, não, diz meu Philip – copiei as palavras – latim, não, nem inglês, nem espanhol, nem italiano portarão as palavras de minha revelação. E de fato, mesmo eu que sou a sombra dele sei quando estou em meus arrebatamentos. Ele escreve ao senhor, assim como eu escrevo ao senhor, que é conhecido acima de todos os homens por selecionar suas palavras e colocá-las em ordem e construir julgamentos como um pedreiro constrói uma parede de tijolos. Quase afogados, escrevemos nossos destinos separados. Salve-nos.∎ 

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Edição: Antonio Kerstenetzky

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André Martins é tradutor e historiador. Defendeu na UFF uma dissertação de mestrado sobre a escrita autobiográfica de Joaquim Nabuco e atualmente desenvolve tese de doutorado na PUC-Rio sobre historio-grafia, sociologia e modernismo no Brasil dos anos 30.

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andrejmartins@gmail.com

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