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eclética, plural e marxista-cultural

O amor na filosofia da busca

Antonio Kerstenetzky

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I.

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Dois modos radicalmente diferentes de ver a filosofia são dramatizados na alegoria da caverna, de Platão. Enquanto o filósofo suspeita sobre a veracidade das imagens que passam à sua frente; enquanto rompe os grilhões que o impedem de mexer a cabeça; enquanto escala a escarpa rumo à entrada da caverna; enquanto seus olhos se habituam à luz do sol, pratica a filosofia como busca. Enquanto desce de volta à caverna; enquanto pretende que a visão obtida forneça um modo de reformar a caverna; enquanto procura educar os outros habitantes de acordo com a verdade, pratica a filosofia como domínio.

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Por mais que haja entre as duas práticas uma ligação importante – a vontade de dominar é decorrente das descobertas da busca – as disposições psicológicas do filósofo ascendente e de seu futuro eu descendente são totalmente diversas. O filósofo que sobe é curioso; o que desce é arrogante. O primeiro deixou de lado todas as recompensas sociais. O segundo fez do resultado da busca instrumento para, em última instância, receber o que parece ser a recompensa mais convencional: determinar o modo dos demais viverem.

 

Apesar de na República Platão desenhar um mundo determinado pelas escolhas do filósofo arrogante – um mundo terrível – foi ele também responsável pela criação da personagem epítome da filosofia curiosa, Sócrates. Na construção dessa personagem, feita ao longo de dezenas de diálogos, é dramatizada a vida do filósofo a romper os grilhões da opinião comum e do preconceito na busca por algo cuja compreensão lhe escapa. Ao mesmo tempo, a recompensa a ser obtida não é o poder de reformar a sociedade, como o filósofo-rei; quando descobre que a morte o levará pobre e descalço, a perspectiva de poder continuar a busca pela verdade separado de seu corpo o anima.

O que o motiva, então? O que faz da busca à verdade algo a determinar as escolhas mais importantes de sua vida, apesar das desvantagens sociais implicadas por esse modo de viver? À primeira vista, a resposta pode parecer desconcertante. A leitora da apresentação de Sócrates em primeira pessoa – a Apologia Socrática – encontrará lá uma justificativa religiosa.

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II.

 

“Um amigo foi ao Oráculo de Delfos”, diz Sócrates, “e a sacerdotisa, possuída por Apolo, disse que na Grécia não há ninguém mais sábio do que eu. Só sei duas coisas: o deus não mente, e eu sou ignorante. O oráculo as pôs em conflito, e portanto em risco o pouco conhecimento que já pude obter.”

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O paradoxo representa um risco existencial. Se o deus fala a verdade, os alicerces sobre os quais está construída a sociedade humana não têm a menor solidez. Nesse caso, afinal, o homem mais sábio é o que anda descalço, não participa da política, não escreve, não tem habilidades manuais e não tem negócios ou posses. A própria possibilidade da existência de Sócrates, no entanto, decorre da existência da sociedade humana ao seu redor. A cidade não só o sustenta com nutrição e guarida: é fonte de gente falante e pensante, material base para uma filosofia realizada através do diálogo. Sua ligação umbilical com Atenas é algo a que atesta quando, ao lhe ser imposta a opção entre o exílio ou a morte, escolhe a morte.

 

A possibilidade de o deus estar mentindo é ainda mais aterradora, mesmo que a princípio não pareça tão estranha. Os épicos de Homero estão repletos de exemplos de duplicidade e hipocrisia divinas, e mesmo o deus da Torá engana um de seus ungidos ao determinar a Abraão a morte do próprio filho, para em seguida fazer um anjo segurar-lhe a mão com a faca.

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Mas a existência de um deus imutável e verdadeiro tem ligação estreita com o modo de Sócrates conceber o significado de ‘conhecimento’. Ao analisar as próprias opiniões, encontrou apenas uma imune à crítica: justamente a que codifica a fragilidade das demais, o ‘só sei que nada sei’. Ou seja, dentro de sua mente há uma estrutura estável, inquestionável, verdadeira. Nada sugere, no entanto, não existirem no mundo outras como ela, cuja posse por outros membros da sociedade justifique e informe suas atividades. Nesse sentido, o ‘só sei que nada sei’ é provavelmente parte de algo maior, um amálgama de estruturas unificadas pelo fato de serem verdadeiras. A descoberta de sua ignorância torna Sócrates consciente da verdade, a fonte estabilizadora do amálgama de estruturas cognoscíveis como o ‘só sei que nada sei’.

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Seria possível esse amálgama existir de modo independente de um sujeito? Em outras palavras, é possível imaginar um ‘conhecimento’ sem alguém que conheça? O próprio termo sugere uma mente ativa e reflexiva. Na metafórica cosmologia grega, era irresistível atribuir a essa noção um personagem – um deus – e com isso uma arquitetura psíquica, uma genealogia, uma ética, ‘causas’ da própria verdade. As características antropomórficas do deus podem ser descritas na medida em que são imagináveis como condições de possibilidade para a existência da Verdade. Não faz sentido, por exemplo, que esse deus seja mentiroso.

 

A antropomorfização da verdade também sugere a Sócrates um caminho para compreender a fala do oráculo. Como faz com seus concidadãos, toca examinar as afirmações do deus, e mesmo o tentar refutar. Não podendo fazê-lo diretamente, desenvolve uma alternativa. Se encontrar outro grego capaz de justificar uma opinião com o mesmo rigor com que ele é capaz de justificar sua ignorância, verificará em posse de outro ser humano um ‘pedaço’ da verdade, o que o porá em pé de igualdade consigo. O fato de o deus não mentir, no entanto, antecipa o resultado: não há ninguém como Sócrates.

 

As inscrições da fachada no templo de Delfos parecem impressionar nos seus frequentadores a mensagem do deus sobre os limites dessa busca. “Nada em excesso”, “certeza, então a ruína”, “conheça-te a ti mesmo” ilustram o caminho a seguir empós do conhecimento e os riscos de crer em algum sucesso alcançado. O templo alerta às limitações cognitivas dos humanos, e nesse sentido é fácil compreender a eleição de Sócrates. A codificação da ignorância parece ser o que de mais seguro se pode encontrar quando se procura conhecer a si mesmo; é, como Sócrates a chama, o ‘conhecimento peculiarmente humano’.

 

Não à toa, suas conversas com os ‘especialistas’ de Atenas sobre o que creem ser seu conhecimento revelam uma profunda ignorância – sobre a qual são igualmente ignorantes. O general não sabe o que é a coragem, o sacerdote não sabe o que é a piedade, o orador não sabe o que é a retórica, e assim por diante. Todos exercem suas atividades alienados do verdadeiro sentido do que fazem; e, a crer no deus, não têm alternativa.

 

Seria lícito interpretar a ida de Sócrates aos ‘especialistas’ como movimento típico de uma filosofia de domínio. Tendo visto a luz – a percepção de nossa limitação cognitiva essencial –, retornou aos que ainda vivem na escuridão para, com suas palavras, iluminá-los e alterar radicalmente o modo como vivem. Mas, caso todos os seus interlocutores se tivessem transformado em Sócrates, o resultado não seria a criação de uma utopia pseudo-platônica, mas o desmantelamento da cidade. Não haveria mais política, templos, exércitos, artesãos ou fazendeiros; não haveria mais Atenas, sem a qual não haveria Sócrates. Os exames de Sócrates, assim, ainda representam uma busca por si mesmo, e não por reformar seus interlocutores: uma tentativa de afastar uma ameaça real à única conclusão segura à qual chegou, o ‘só sei que nada sei’.

 

Paradoxalmente, quando essa certeza é definitivamente cristalizada, Sócrates se encontrou mais distante da entrada da caverna do que anteriormente julgava estar. Encontrou-se à frente dos demais humanos, certamente, e tem uma ideia mais clara sobre a natureza da luz adiante; mas descobriu que é inalcançável para seres de sua espécie. O que parecia ser um caminho se revelou uma escarpa inescalável, no topo da qual ainda brilha, tão forte quanto sempre, a luz da verdade.

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III.

 

Assim pareceria terminar a filosofia, com a descoberta do fim do caminho. Mas não é o fim da saga de Sócrates, o épico filosófico de Platão. Uma nova intervenção divina o impede de parar de filosofar: um daimon (ou espírito), que o acompanha, força-o a conversar sobre coisas em relação às quais não tem certeza. Sócrates começa a explorar ideias sobre as quais não há nenhuma possibilidade de segurança gnosiológica, apesar de isso por vezes o cobrir de vergonha.

 

O daimon o faz falar de conteúdos cuja posse verdadeira só poderia ser obtida se a escarpa inescalável fosse vencida, e fosse facultado a um humano ver coisas que não se prestam à visão. A natureza da alma, por exemplo: somos capazes de observar seres humanos em ação e suas relações com o mundo. Podemos ouvir suas vozes a descrever seu entorno, ver seus rostos se enrubescendo inadvertidamente e medir os estalos de suas sinapses. Mas o próprio conteúdo da mente – a sua arquitetura interna, a estrutura dos seus modos de desejar, o substrato do qual nascem os comportamentos humanos – é tão próximo de nós quanto é incognoscível.

 

E, dentre os seus elementos mais insondáveis, está justamente a natureza de sua relação com a verdade. Por que desejamos tanto algo tão além de nossas capacidades? A resposta – incerta como todas as oferecidas depois da descoberta da ignorância – parece estar localizada na arquitetura da alma. Há algo na alma que a impele ao conhecimento, não importa a futilidade do impulso.

 

Como na cosmologia socrática o conhecimento é posse do deus, foi descoberto na alma um desejo pelo divino. A alma é uma carruagem alada, canta Sócrates no Fedro, puxada por um par de cavalos desentrosados. Um deles nos puxa para baixo, em direção ao prazer ou à preocupação à frente de seus olhos. O outro é simplesmente obediente, adestrado, capaz de seguir os comandos do cocheiro com monótona regularidade.

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As asas, no entanto, têm vida própria; impelem-nos para cima, fazem das patas dos cavalos forças inertes e das escarpas obstáculos transponíveis. As almas livres de corpos voam atrás dos deuses, enquanto estes fazem circunvoluções ao redor das formas da verdade. Seguindo a custo no cortejo, conseguimos ver a verdade de soslaio, enquanto o cocheiro briga com os cavalos. A encarnação significa a vitória do cavalo mau, cuja insistência puxa toda a alma para baixo até que caia em um corpo. No processo, os cálamos das penas foram ressecados pela encarnação, tornando as asas inúteis. A existência encarnada é assim dominada por desejos ‘equinos’, terrestres.

 

Mas as asas atrofiadas não deixam de existir, e o desejo pelo divino está dormente em todos os humanos, esperando pelo beijo que o desperte. Sair do torpor da existência cotidiana depende de alguma experiência capaz de nos pôr de frente com a profundidade do real; que nos revele a mediocridade da repetição acrítica de comportamentos e opiniões herdados e inspire a busca.

 

Uma tal experiência é o amor: um desejo incompreensível se nos aferrarmos às características dos cavalos ou do condutor. Não é determinado pelo prazer, como o cavalo ‘mau’; tampouco é racional, como o condutor; certamente não é obediente, como o cavalo ‘bom’. É efeito, propõe Sócrates, de uma ‘lembrança’ induzida pela visão do amado. Sua beleza nos remete à própria Beleza, um dos pedaços do amálgama da verdade avistado quando éramos desencarnados.

 

A proposta de Sócrates: o amor é uma espécie de loucura. Sua manifestação é causada por elementos transcendentes ao que nos envelopa. Está além da ‘sanidade humana’, esse edifício de palavras com que construímos nossa frágil cidadela social. A visão da beleza do outro revela o desejo pela beleza, carregado no âmago próprio. Sentir amor é, então, ver no outro o que há em si; e a descoberta do que há em si só é possível graças à visão do outro.

 

Há de se ter cuidado, pois a sanidade humana pode a qualquer momento pôr a perder a fagulha divina. Relações podem se tornar motivadas por vantagens convencionais, como dinheiro ou status; podem se tornar limitadas ao prazer; podem ainda se manter simplesmente por obediência a tradições que determinam artificialmente sua necessidade. Em outras palavras, a racionalidade, o prazer e a obediência não fazem jus à natureza do amor, cuja motivação deve vir daquela outra parte da alma: as asas.

 

O amor é ‘divino’ porque, como o desejo pelo conhecimento, é algo cuja existência se faz indubitavelmente presente mesmo se é em grande medida indescritível. Os cavalos e o cocheiro representam a relação do humano com o mundo nos seus modos óbvios – os desejos ocupando o gradiente entre a necessidade de subsistir e a vontade de se diferenciar do outro. Já o amor é o desejo sabe-se-lá-pelo-quê. É aparente desejo em estado puro, sendo permitido a nós apenas entrever seu objeto a partir do contato com algum outro humano tomado pela mesma ‘loucura’. O encontro com o outro apaixonado permite ao sujeito reconhecer o que ocorre em si: ver o outro permite dizer ‘é isto! No mais importante sou como ele’.

 

Para Sócrates, esse desejo pode ser traduzido como desejo pelo desconhecido; ou, ainda, desejo pelo incognoscível – pelo conhecimento do que não posso conhecer. Uma marca peculiar sua é a capacidade de se apaixonar reiteradamente, o que no Fedro chama de a ‘técnica erótica’. O modo como escalou à petição de ignorância mostra sua operação: atingiu o ‘conhecimento peculiarmente humano’ através de visões de sua alma à luz das palavras emanadas por outras almas. A ignorância dos outros era a sua própria. O desejo por conhecer a si e o desejo pelo outro eram o mesmo.

 

Essas conversas, no entanto, foram frutos de relações unilaterais: um amante tentando alçar voo acompanhado de almas cujas asas foram desnutridas por décadas de favorecimento aos cavalos e cocheiro. Não há entre os parceiros reconhecimento mútuo, e há entre os personagens destes diálogos uma clara dissonância de objetivos. A demonstração da ignorância instiga Sócrates, mas irrita seus interlocutores; depois que a demonstração inevitavelmente ocorre, a conversa bate em um muro. É este um efeito lamentável da vida na terra: quanto mais tempo corre, maior a chance de uma certa arquitetura da alma se enrijecer. Se as asas não são estimuladas durante décadas, será muito difícil se deixar apaixonar de alma toda.

 

Por isso os jovens são atraentes a Sócrates. Suas almas ainda moldáveis se podem deixar instigar. São ainda férteis, e nelas as palavras de Sócrates podem despertar o mesmo desejo que o determina. Se a corte der certo, as palavras podem germinar, rendendo como fruto a capacidade de fecundar outras almas no futuro. Como o desejo pelo sexo, um dos efeitos do desejo pelo conhecimento do incognoscível é construir uma linhagem cujos filhos continuarão a habitar o mundo enquanto houver humanidade. Assim, esse desejo se revela divino em outra dimensão: é também uma pretensão de imortalidade.

 

De fato, a série de fecundações que começou com Sócrates continua operando ainda hoje. Ao longo do caminho, encontrou outras linhagens, de origens e tradições variadas. Algumas fecundaram seu discípulo Platão. Mas o Sócrates platônico tem como maior peculiaridade o fato de ser uma instância de geração divina. Sua fecundação não foi obra de um humano.

 

No Simpósio, a sacerdotisa Diotima revela a um jovem Sócrates que o amor – Eros – é um daimon. Nem deus nem humano, é um mensageiro entre os dois, operador do contato entre seus mundos. Os daimones são responsáveis pelas loucuras divinas que podem nos acometer, como a profecia, o fazer poético, as visões e o desejo pelo incognoscível. A fecundação de Sócrates, os diálogos parecem querer dizer, foi determinada pelo deus através de um seu mensageiro, o daimon que o manda filosofar, algo que frequentemente significa não abandonar um jovem enquanto não tiver feito o máximo para provocar nele o desejo pelo conhecimento.

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IV.

 

O diálogo platônico em que o intercurso erótico-filosófico se dá mais explicitamente é a República. Como esperado, os interlocutores de Sócrates, os irmãos Gláucon e Adimanto, são jovens. Pistas da relação especial que têm com Sócrates estão espalhadas pelo diálogo. Gláucon e Sócrates foram a um festival no Pireu, cidade vizinha a Atenas; estavam andando de volta quando o escravo de Polemarco puxa a túnica de Sócrates: seu mestre gostaria que ficasse e conversasse. É Gláucon quem responde, por Sócrates: “ficaremos e conversaremos”. “Mas,” Sócrates arrisca, “não posso tentar persuadir nossos amigos que tenho de voltar para casa?” “Não há como,” responde Gláucon. Adimanto, que a essa altura os alcança, faz os planos para o trio: “ficaremos e conversaremos, e depois vamos assistir à corrida de cavalos da noite”. Gláucon vaticina: “não há alternativa, devemos ficar.”  Sócrates, docilmente, deixa de resistir.

 

A conversa a seguir mostra por que a vontade dos irmãos é suficiente para que Sócrates esqueça de seus poderes de argumentação. Depois de uma pequena introdução, o trio conversa como se estivesse sozinho, apesar de haver pelo menos outras dez pessoas presentes. Vemos um Sócrates entusiasmado por almas tão instigantes, e envergonhado com a perspectiva de apresentar uma ideia que o pode tornar ridículo aos olhos da dupla. Ao longo do diálogo, descobrimos nos irmãos o desejo nascente pela busca filosófica, que a insistência pela conversa do início do texto sugeria. Eles seguem o argumento onde este os leva, impedindo Sócrates de abandonar temas cuja exploração os deixa insatisfeitos.

 

Por isso, na República se fala de tudo. Sua abertura contém os passos típicos de diálogos cujo fim é a descoberta da ignorância. No seu desenvolvimento, vemos discussões sobre a natureza da alma, a definição de todas as virtudes, o significado de justiça, de filosofia, sobre o melhor projeto pedagógico possível, sobre viver e morrer bem, sobre o que ocorre com a alma desencarnada. O diálogo é uma busca sincera, irrefreável e sem escrúpulos.

 

A conversa eventualmente aporta no desconhecido mais incognoscível: e se houvesse pessoas capazes de conhecer o desconhecido? E se houvesse filósofos cuja busca os tivesse de fato levado para fora da caverna, e os tivesse banhado com a luz do conhecimento puro? Como seriam esses super-humanos, e que efeitos sobre o mundo teriam?

 

Seu primeiro passo seria, como a descida da caverna sugere, tentar pôr o conhecido em prática. De posse da verdade, não há alternativa ética que não trazer as boas novas à população desinformada, e fazer a reforma de que o mundo sempre precisou apesar de não ter meios de descrever. A prática do domínio pelo filósofo conhecedor da verdade é uma imposição cosmológica; ter entrado em contato com o que é o torna um operador da verdade no mundo.

 

Inevitavelmente, o sistema que cria é altamente estratificado: a própria posse da verdade se torna o principal mecanismo de estruturação social. No topo, os sábios; logo abaixo, os dispostos a fazer o necessário para garantir a manutenção do sistema ‘verdadeiro’; e, soterrados, todos os demais.

 

Não há modos de saber a opinião de Platão sobre essa perspectiva; mas é notável que a descoberta da verdade implique uma mudança completa na relação do filósofo com o mundo, a ponto de tornar o modo de viver do herói Sócrates obsoleto. A obtenção da ‘sofia’ apaga a ‘filo’. O encontro perfeito do sujeito com o objeto implica o fim do desejo e, por conseguinte, a criação de um ser humano cuja vida não é mais determinada por cavalos ou asas. Se antes o filósofo era instigado pelo desejo por si e pelo incognoscível através do outro, agora o é apenas pela responsabilidade de tutelá-lo.

 

É, então, uma sorte que a saída da caverna esteja, na realidade, interditada. Se o próprio Platão não emite este juízo, ele está disponível a nós: muito melhor ser como Sócrates do que como o rei-filósofo. Muito melhor provocar as asas do que verdadeiramente voar: mantermo-nos por aqui, junto aos nossos companheiros de existência, buscando entender a eles e a nós. Melhor sermos conscientes de que nossas limitações constitutivas sempre farão com que todos sejamos, no que mais importa, fundamentalmente ignorantes e, por isso, iguais. âˆŽ 

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Edição: Luiz Eduardo Freitas, Daniel Mano, Marcos T. Miranda

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Antonio Lessa Kerstenetzky é formado em História pela UFF e mestrando em Filosofia pela USP. Foi editor da falecida Folha do Gragoatá (2012-2016) e é editor da Capivara.

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antoniokersten@gmail.com

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