A velha crise da democracia
Luiz Eduardo Freitas
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O resultado das eleições de 2018 no Brasil consolida o que parece ser um movimento de ascensão de lideranças autoritárias de direita no mundo. A contradição que mais causa perplexidade é a sua escolha e legitimação popular: as pessoas estão elegendo representantes que visam adotar medidas violentas e antidemocráticas. Os novos líderes da extrema direita parecem ganhar popularidade quase na mesma proporção com que apresentam desdém pelas instituições de controle e pela imprensa, escolhendo como alvo de seus discursos de ódio as minorias historicamente desprotegidas pelo Estado e sendo aplaudidos ao anunciar soluções que flertam com o totalitarismo. É possível dizer, a partir desses elementos, que estamos vivendo uma crise da democracia representativa.
Não é, no entanto, a primeira vez na história recente que se levanta semelhante hipótese. Bernard Manin, em As metamorfoses do governo representativo, texto de 1995, descarta o que estava sendo também então chamado de crise dos regimes democráticos. Para Manin, naquele momento o mundo ocidental estaria vivendo uma fase de transição para um novo tipo de regime, cujas características, apesar de parcialmente diferentes do modelo que imperou durante a maior parte do século XX (que ele chama de “democracia de partido”) ainda definiriam uma democracia representativa.
No regime então nascente que Manin denomina como "democracia de público", o fator crucial para decidir o voto deixa de estar na identificação, a partir das características de classe, com o projeto de um partido. A importância determinante passa a ser a identificação do eleitor com a personalidade de um candidato e a confiança nessa figura pública. Nesse novo regime, os eleitores escolhem uma pessoa, e não o projeto de um partido. Isso se explicaria pelo papel das novas tecnologias de comunicação de massa, como rádio e televisão, que privilegiam a individualidade dos políticos e a sua imagem sem a mediação do partido – dando lugar à prevalência do político como comunicador.
A escolha do voto reflete necessariamente uma divisão entre os eleitores, afinal, a identificação da sua própria escolha o separa dos que escolhem diferente. Contudo, a divisão não é mais tão estável como na democracia de partido. Como não há mais fidelidade a um conjunto de ideias sólidas representadas por um partido, as clivagens sociais passam a ser mobilizadas por cada candidatura de acordo com o melhor proveito que se pode tirar delas – e fundamentais para o funcionamento estratégico dessas clivagens seriam as pesquisas de opinião. A partir dessas clivagens são definidos os parâmetros e as tomadas de posição da candidatura, de modo que o eleitorado teria papel menos ativo na construção do projeto, que é transmitido de modo espetacular pelo político-comunicador – daí o nome democracia de público.
Dadas as peculiaridades da política nacional, é possível dizer que o modelo da democracia de partido não se aplica ao modo como se comporta a maior parte dos partidos brasileiros. Mas, se há algum partido contemporâneo que se encaixa nesta fórmula -- ou já se encaixou algum dia -- é o PT. Definidores nessa eleição foram a imagem de partido que se pauta pelas demandas de classe e a ausência de uma candidatura carismática conhecida ao público: o partido não foi capaz de eleger o presidente em 2018.
A ojeriza à existência de um partido que representaria ideais de classe, aliás, é sintomática e vem tomando várias formas nos anos recentes - institucional, através de projetos como o Escola sem Partido; social, como a expulsão dos partidos de manifestações, e eleitoral, com os discursos de Bolsonaro contra uma política externa “de viés ideológico”. A caracterização da democracia de público é capaz de explicar parte do fenômeno eleitoral representado por qualquer populismo personalista, mas o modo como se mobiliza a sua fundamental oposição à democracia de partido é particularmente útil para pensar a formação do bolsonarismo.
É importante atribuir a importância devida a esses elementos eleitorais mais abstratos que, embora pareçam triviais e pouco novos, começam a ser mobilizados com muita aptidão pela nova extrema direita. O próprio Steve Bannon, uma das figuras por trás do marketing das eleições de Trump, nos Estados Unidos, e em alguma medida de Bolsonaro, no Brasil, reconhece em entrevista para a Folha de S. Paulo os motivos de sucesso para a candidatura de ambos: soluções sob demanda, conexão com o eleitor e carisma.
Claramente, o populismo de centro-direita, conservador e nacionalista, é uma das tendências mais importantes do século 21. Vejo três principais pontos em comum entre esses líderes: em situações muito confusas, conseguem identificar quais são os principais problemas e articular as soluções. Por serem autênticos, eles conseguem se conectar com o público de massa, particularmente com a classe trabalhadora e classe média, de modo muito visceral. E, em terceiro lugar, eles têm carisma.
Bannon é a mente responsável pelo tipo de marketing avassalador dessas candidaturas da nova direita, fazendo uso das redes sociais e da internet com uma habilidade que nenhum outro segmento do espectro ideológico demonstrou dominar. Ainda assim, ao tentar explicar o sucesso eleitoral de seus candidatos, Bannon basicamente expõe uma formulação semelhante à caracterização da democracia de público de Manin. Reconhecer problemas e articular soluções simples, se conectar com o eleitor, exibir carisma: são esses os ingredientes que fazem o político ganhar a confiança do eleitor em um nível pessoal.
Seria possível, com razão, falar que o conceito de Manin não contempla os principais aspectos da crise atual, definida pelo paradoxo da eleição de representantes com propósitos fundamentalmente antidemocráticos a partir da difusão de uma rede paralela de informações. Contudo, talvez não se trate de uma nova ruptura, mas de se levar às últimas consequências as características levantadas por Manin ao definir a democracia de público em meados dos anos 90 e analisar quais foram as modificações possibilitadas pelo avanço da técnica nas duas décadas que nos separam de sua análise. Isso, por sua vez, traz à tona alguns dos principais problemas inerentes à própria democracia desde seu surgimento.
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Há o novo método de difusão da mensagem. O uso do WhatsApp para divulgação de fake news foi apontado como o principal trunfo de Bolsonaro nas eleições - assim como a promoção de fake news no Facebook foi, segundo a leitura da maior parte da imprensa americana, responsável pela eleição de Trump nos Estados Unidos. O esquema de caixa 2 revelado pela Folha e a própria admissão de Steve Bannon em entrevista ao jornal são evidências de que este foi o principal meio de divulgação da propaganda “anti-esquerda” da campanha Bolsonaro.
A difusão das fake news por meio de uma rede social “fechada” como o Whatsapp é um fator importante, mas o meio por si só não é capaz de explicar o fenômeno todo. Precisamos pensar os aspectos psicológicos que fazem com que as pessoas acreditem, compartilhem e se mobilizem em relação ao discurso de sua campanha.
O discurso de ódio do Bolsonaro baseia-se em uma clivagem eleitoral bastante peculiar. Ela é essencialmente desigual, por ser restritiva de um lado e abrangente em relação à oposição. Em outras palavras, são englobadas no pacote de “inimigo” tantas minorias – mulheres, negros, LGBTs, estrangeiros – que espanta o fato de que haja um número significativo na “maioria” restante capaz de apoiá-lo. A explicação superficial de que a maioria dos brasileiros é intolerante ou tem ideais fascistas é flagrantemente falsa se considerarmos as escolhas eleitorais das últimas décadas. Boa parte das propostas mais concretas e específicas dessa nova extrema direita não encontra amparo popular - é possível afirmar que, no mínimo, a população brasileira é historicamente reticente em relação a privatizações e ensino a distância, por exemplo. Além disso, insistir nessa ideia inviabilizaria a própria possibilidade de um regime democrático em nosso país.
Por trás das campanhas, há uma máquina de convencimento que, através da manipulação das emoções de alguns perfis “ideais” do eleitor médio, é capaz de catapultar um movimento de militância: evoca-se o ultraconservadorismo a partir do medo (de que haja um kit gay nas escolas, de que o Brasil esteja se transformando em uma ditadura comunista, de que os valores tradicionais estejam se perdendo) e oferece-se uma solução aparentemente lógica (se a esquerda é responsável pelas mazelas do Brasil e ela defende intervenção estatal, devemos minimizar e terceirizar o papel do Estado). A eleição de Bolsonaro e a insurgência de um neoliberalismo radical fundamentado num conservadorismo alarmante, afinal, fazem parte de um movimento global que compartilha, além da extrema aptidão nas campanhas eleitorais, um viés ideológico.
O primeiro ponto fundamental para entender sua estratégia talvez seja o de que a produção dessas notícias se pauta no senso comum para mobilizar um elemento identificável, plausível, que já permeia o imaginário dos eleitores. Entre os elementos desse imaginário nas últimas eleições estiveram, por exemplo, a aversão à política tradicional de partidos, a percepção de que a corrupção deteriorou os governos do PT, e uma incompreensão do papel estruturante de “preconceitos” como o racismo e a homofobia na cultura nacional. A partir disso, o discurso de um candidato que se diz sem financiamento partidário, que promete expulsar e prender os opositores do PT e acabar com os supostos privilégios e vitimismos das minorias ressoa no eleitor médio. É verdade que muitos desses “axiomas” foram fomentados por muito tempo pela própria mídia tradicional, mas foi a nova direita que produziu as narrativas que, partindo de um ou mais desses elementos, aumentam o sentimento de insatisfação ou de revolta. Uma vez aceitos os “princípios” da história e mobilizados sentimentos suficientemente profundos, cria-se uma motivação para aceitar - e, mais importante, compartilhar - qualquer dado que corrobore a necessidade da eleição do dito candidato.
O cerne desse mecanismo não é novo, nem serviria para qualificar a crise eleitoral como inédita. Estratégias parecidas são utilizadas em quase qualquer campanha eleitoral. Há quase 2.500 anos, no contexto da democracia ateniense, Platão já descrevia no seu célebre diálogo Górgias recursos bastante semelhantes utilizados pelos respeitados retóricos da época para ganhar prestígio e influência política ao exercer poder sobre suas plateias. Sócrates afirma que a grande potência da retórica era a capacidade de gerar prazer no ouvinte na forma de adulação. A partir da identificação parcial com o conteúdo do que estava sendo proclamado, o espectador é convencido de tudo o que está sendo defendido, independente da relação do que se fala com a verdade das coisas. Os retóricos gregos, ao mobilizar os desejos mais primais de suas audiências, produziriam um prazer que fazia as pessoas tomarem as decisões mais imprudentes.
Para Platão, trata-se, no fundo, de uma crítica à própria democracia: como a maior parte das pessoas não possui o conhecimento necessário das técnicas específicas para tomar as melhores decisões da cidade, a opinião da maioria se voltará para quem falar as coisas mais aprazíveis aos seus ouvidos. Ou seja, a sujeição ao poder de uma “retórica” potencialmente hábil mas desqualificada em sua relação com a verdade das coisas seria uma característica inerente aos sistemas de governo democráticos.
Essencialmente, este é o mesmo mecanismo utilizado na campanha de Bolsonaro. O que possibilita que esses mecanismos retóricos tenham sido apropriados com tanta maestria pelas candidaturas de direita neste momento histórico, ademais, é o estado culminante da democracia de público, que de certa maneira faz dos políticos novos “rétores”: além do fim da mediação partidária, nos anos recentes prescinde-se da própria mediação da imprensa ou dos grandes veículos de comunicação, e o político pode falar em lives diárias diretamente com o público. Com o fim da identificação do eleitorado com o rígido discurso de classes, e sob a fachada de um indivíduo que é impulsivo e fala o que pensa, é possível modular os discursos de acordo com o que a sua plateia gostaria de ouvir. Soma-se a isso a nova habilidade de sondar a opinião de milhões de pessoas a partir das bases de dados sobre os perfis virtuais dos eleitores, a partir das quais se pode detectar a forma mais eficiente de adular a população.
As novas pesquisas de opinião - não apenas as realizadas por institutos tradicionais, como nos anos 90, mas as propiciadas pelas grandes bases de dados virtuais - são muito mais eficientes para reportar o que agrada quem irá receber as notícias de campanha. Trata-se da aplicação em larga escala da também clássica tática utilizada pelos retóricos atenienses, como o próprio Górgias, de aproveitar o momento oportuno (kairos) em que seria possível, através da linguagem, mobilizar as diferentes demandas subjetivas, redirecionando-as a um desejo por ação.
Como as fake news são produzidas para angariar a identificação com as crenças mais fundamentais dos eleitores e motivar seu desejo por ação a partir de seus piores medos, a candidatura forma em seu eleitorado-alvo uma indisposição (ou mesmo uma incapacidade) para argumentar a partir de outra versão dos fatos. As oposições formuladas pela candidatura, na medida em que são eficientes, inviabilizam o próprio diálogo com a outra parte do eleitorado. Além disso, a perda de confiança nas instituições tradicionais detentoras de saber político - sejam os partidos ou a própria imprensa - blinda os eleitores dos dispositivos de checagem das informações que recebem. A mobilização dos sentimentos do eleitor a partir de uma clivagem suficientemente forte gera uma ruptura motivada pelo ódio, o que significa que qualquer solução deve passar não pela conciliação com o outro, mas pela violência. Além disso, os próprios pressupostos e fontes de informações não são compartilhados, de modo que tudo que vem “do outro lado” passa a ser visto com desconfiança e a ser automaticamente rechaçado.
Este artifício serve a um duplo propósito: fomenta a veemência da militância e cria uma barreira contra quaisquer críticas. À medida que a clivagem ganha força, mais fácil é classificar qualquer fonte que levante o menor questionamento como pertencente ao inimigo. O resultado é que cada segmento constrói sua própria interpretação da conjuntura e do processo eleitoral. Em outras palavras, exacerba-se o petismo e o anti-petismo.
As clivagens, então, apesar de serem constituídas em parte pelas próprias candidaturas, não são feitas a partir de um debate compartilhado - o que não previa Manin. A diferença fundamental em relação ao cenário descrito por Manin é que, com a formação de "bolhas" de comunicação, as narrativas não precisam entrar em embate, uma vez que o protagonismo dos debates fomentados pela grande mídia e pelos institutos de pesquisa dá lugar a redes sociais em que só se tem acesso a uma das narrativas. Consequentemente, se difunde com mais sucesso a narrativa que é mais atraente para o eleitorado, a clivagem que faz mais sentido.
De certa forma, voltamos ao dilema platônico, dessa vez mediado por uma espécie de perspectivismo político: as pautas, os pressupostos e a divisão da sociedade que ditam todo o conteúdo de uma campanha simplesmente são incomensuráveis em relação à outra. Mais do que pós-verdade, podemos tratar esse fenômeno como a execução de um relativismo extremo, aliado a um senso de oportunidade - ambos artifícios originalmente gregos, já contemplados pela crítica à democracia desde Platão.
Para Platão, outro fator que inviabiliza a democracia como um bom regime é a impossibilidade de conciliar os inúmeros desejos irrefreáveis que surgem em uma forma política com muitas vozes, quando esta não tem um comando único capaz de guiar as decisões da sociedade. Nos Estados modernos, vigora um modelo de democracia republicana segundo o qual o comando é estabelecido a partir do diálogo e da conciliação entre diferentes interesses; o conflito precisa ser em algum momento remediado, a partir de compromissos de pelo menos uma das partes. Isso exige um parâmetro comum, algo como um mesmo “sistema epistemológico” a partir do qual, embora se possa tomar diferentes posições, o debate é reconhecido a partir dos mesmos parâmetros objetivos. Quando, numa campanha eleitoral, sequer as questões ou os pressupostos são compartilhados, ficamos um pouco mais distantes das próprias condições de um governo democrático no sentido moderno.
A adulação da audiência e o senso de oportunidade, desprovidos de qualquer fundamentação na verdade, são problemas localizados desde a primeira sociedade democrática de que temos notícia. Esses artifícios, que ganham lugar com as alterações técnicas da comunicação de massa e com a perda de confiança do eleitorado nas instituições tradicionais tradicionais de saber político - partidos e imprensa - estão hoje ao dispor da democracia representativa, para o bem e para o mal. Sob essa luz, é paradigmática a quase obsessão de Bolsonaro com a verdade no seu discurso pós-vitória: “A verdade foi o farol que nos guiou até aqui e vai seguir iluminando nosso caminho”. A falta de compromisso de Bolsonaro com a verdade, como de praxe, torna o seu discurso mais iluminador se o tomamos às avessas. Bolsonaro não ganhou as eleições porque foi guiado pela verdade, mas porque guiou as crenças de seus eleitores para que acreditassem na narrativa que construiu. ∎
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Edição: Hugo Salustiano e Antonio Kerstenetzky
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Luiz Eduardo Freitas é formado em Filosofia pela UFF e doutorando em Filosofia pela USP, onde pesquisa Platão e filosofia antiga.
É editor da Capivara.
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