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eclética, plural e antifascista

A cabeça dos outros e outras cabeças

André Martins

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Sabemos que a conquista da América pela civilização europeia foi marcada, e é marcada, pois não terminou (oxalá ela nunca venha a terminar!), pela imposição do poder pela violência. Desconhecem-se expedientes de brutalidade de que os adventícios se tenham privado – usaram e abusaram de tudo que estivesse à sua disposição, justificando seus arbítrios, sincera ou cinicamente, na missão divina que lhes caberia – para expandir os limites da cristandade e salvar o maior número possível de almas. Um capítulo dessa tragédia, porém, é curioso. Os missionários que aportavam por aqui nos dois primeiros séculos de colônia encontravam poucas resistências da parte do natural da terra no que diz respeito à boa nova. A ser verdade o que nos relatam os cronistas, o fato é que os gentios demonstravam mesmo algum entusiasmo pelas ideias novas que lhes chegavam. Inicialmente animados pela facilidade inesperada, os catequistas em pouco tempo se decepcionaram: tão logo saísse do alcance de seus olhos, o nativo voltava a ceder a inclinações que acabara de ouvir serem tentações diabólicas – poligamia, idolatria, canibalismo, sodomia, e assim por diante. Nem por isso ele se imaginava em contradição com sua recente conversão ao cristianismo – a bem dizer, à tradução possível que os missionários dele faziam e expunham, normalmente na língua dos próprios índios. Assim se queixava dessa particularidade o Padre Antonio Vieira, no Sermão do Espírito Santo:
 

Os que andastes pelo mundo, e entrastes em casas de príncipes, veríeis naqueles quadros e naquelas ruas dos jardins dois gêneros de estátuas muito diferentes, umas de mármore, outras de murta. A estátua de mármore custa muito a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas, depois de feita uma vez, não é necessário que lhe ponham mais a mão: sempre conserva e sustenta a mesma figura; a estátua de murta é mais fácil de formar, pela facilidade com que se dobram os ramos, mas é necessário andar sempre reformando e trabalhando nela, para que se conserve. Se deixa o jardineiro de assistir, em quatro dias sai um ramo que lhe atravessa os olhos, sai outro que lhe descompõe as orelhas, saem dois que de cinco dedos fazem sete, e o que antes era homem, já é uma confusão verde de murtas. Eis aqui a diferença que há entre umas nações e outras na doutrina da fé. Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados; resistem com as armas, duvidam com o entendimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem; mas, uma vez rendidas, uma vez que receberam a fé, ficam nela firmes e constantes, como estátuas de mármore: não é necessário trabalhar mais com elas. Há outras nações, pelo contrário – e essas são as do Brasil – que recebem tudo o que lhes ensinam com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura do jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas e mestre delas: uma vez, que lhes corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que não veem; outra vez, que lhes cerceie o que vicejam as relhas, para que não deem ouvidos às fábulas de seus antepassados; outra vez, que lhes decepe o que vicejam os pés, para que se abstenham das ações e costumes bárbaros da gentilidade. É só dessa maneira, trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural, e compostura dos ramos.
 


Seria o selvagem um indolente, um sem-caráter, um desonesto, como vieram a retratá-lo seus detratores? O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro defende que não – a “inconstância” dessa gente era, na verdade, sintoma de uma especial voracidade intelectual, materializada na abertura ao pensamento do outro como fundamento da vida espiritual. A tese é, por sinal, consoante com as intuições de Oswald de Andrade no conhecido Manifesto antropófago. Não era em virtude de alguma “má índole” que a fé cristã não se podia fixar, com solidez marmórea, na sua cabeça. O índio ouvia, de boníssimo grado, a palavra do sacerdote. Proclamava, com gosto, sua adesão ao credo do invasor. Mas não conseguia parar de pensar. Saía a caminhar – e um arbusto oscilante ao vento, o canto de um sabiá, a visão de um bando de capivaras, qualquer novo estímulo poderia ser ocasião para uma ideia nova. Podemos apenas lamentar que semelhante estilo de vida mental esteja restrito, se tanto, à parcela minoritária da população brasileira que se identifica como indígena. Ou então, quem sabe, podemos imaginar que o missionário, cego pela urgência de conquistar almas, ou o bandeirante, cego pelo próprio sadismo, se tenha deixado insensivelmente contaminar, em alguma medida, pela inconstância da alma selvagem. Ele afinal aprendera uma nova língua, uma gramática e uma sintaxe gestadas em meio àquela estranha espiritualidade metamorfoseante dos nativos.


Será crível semelhante disparate? Em Raízes do Brasil, quatro séculos após os contatos iniciais dos portugueses com os índios, Sérgio Buarque aponta como característica da inteligência brasileira o amor pelas ideias dos outros – um amor mecânico, de cópia, fruto de uma consideração quase estética pela forma dos sistemas filosóficos importados. Amor enrijecido, melancólico, luso, mas amor real pela ideia e pelo outro. Seria o homem cordial, ultimamente muito castigado pelos intelectuais da moda, meio tupi? Um índio que desconhece sua porção índia, mas que reproduz, de algum jeito torto, em algum desvão imperceptível das engrenagens do pensar, a inconstância? Para o índio, o português, além de inimigo, era destino. Talvez haja mais índio em nosso destino do que estamos acostumados a reconhecer.


Na recente campanha eleitoral, assistimos, boquiabertos, ao enrijecimento do discurso político – muitas pessoas pareceram se abandonar com gosto ao kit de ideias, piadas e memes do respectivo candidato (o “respectivo” não é aqui simplesmente um tributo hipócrita a uma concepção escolar de isenção ou neutralidade), em certos casos renunciando mesmo à mais pedestre epistemologia. Vai então, à luz das considerações acima, um pouquinho de esperança: esse ser humano que se tornou impermeável aos nossos argumentos nesse último período, que se tornou um bot humano a repetir o blábláblá intragável de nossos algozes (agora, se o leitor quiser, que entenda de que “lado” fala o autor), não é, talvez, um autômato de mármore. Talvez os fios que ligam seus pensamentos não sejam do cobre que serve de conector físico às correntes de mensagens virtuais, mas raízes e galhos, recém-regados com a água pestilenta do fascismo. Não admira que por ora só consigam exalar o ar malcheiroso que metabolizaram.

 

Mas, voltando a Vieira, “em levantando a mão e a tesoura” desse sinistro jardineiro, logo começam a vicejar novas ideias. Não adianta querer prender a cabeça de quem pensa como planta, nem com a jaula de ferro do evangelho – não há Cristo ou promessa de tortura infernal que faça uma trepadeira parar de lançar novos ramos. Não há esvaziamento de conteúdo que desfaça por completo uma forma. A esperança é que haja índio o bastante em nós e em nossos outros. Assim, a superação de tudo isso que está aí (e que estamos aqui) pode ser mais – imaginável.

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Hugo Salustiano é formado em Relações Internacionais e mestrando em Antropologia pela USP.

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hugosalustiano@gmail.com 

A sociedade contra Estado (Ubu, 2017) e Arqueologia da violência (Cosac Naify, 2014), de Pierre Clastres.
 

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André M
22 de nov de 2018 15:24

para Hugo

Oi H

 

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André M
22 de nov de 2018 15:25
para Hugo

Oi Hugo, eu estava começando a escrever uma resposta ao seu email mas minha mão esbarrou e enviou "Oi H" (peço que desconsidere). Você pode esperar um email meu mais completo proximamente.

Um abraço,

André

 

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André M
22 de nov de 2018 19:16
para Hugo

Oi, Hugo! (Em tempo: muito prazer!)

Gostaria primeiro de agradecer pela leitura tão atenta e cheia de comentários densos para um texto tão curto.


Passo às questões levantadas por você.

Seu questionamento vai no sentido, se bem entendi, de contradizer a tese da sobrevivência de um estilo de pensamento ameríndio na mentalidade do brasileiro contemporâneo. Concordo que, como você diz, a tese é arriscada. Uma primeira resposta seria afirmar que ela está enunciada num estilo explicitamente utópico, mas creio que pode haver aí uma concretude "científica" possível, pois há quem defenda que, como forma de pensamento, a utopia expõe os elementos de um porvir que não se deixam mostrar na consideração mais "realista" do mundo. Mas ficar nisso seria muito fácil, e eu acredito que a tese tem uma fundamentação que não foi explicitada no texto.

Passo então então a uma tentativa de demonstração desse lado mais "sensato" da hipótese.

Do ponto de vista dos conteúdos da cultura, a tese de fato não se sustenta - os conteúdos da "cultura brasileira" extraídos da "cultura ameríndia" são no mais das vezes materiais e não teórico-conceituais (ou cosmológicos, numa linguagem mais cara à antropologia). O caráter da incorporação do saber indígena teria de ser, então, morfológico, daí que ele seja menos evidente, depois que todos são obrigados a falar português, usar roupas, acreditar no Deus cristão e não comer gente - a sobrevivência teria que ser de forma e não de conteúdo. (Essa sociologia da cultura de orientação morfológica é o motivo pelo qual incluí Georg Simmel entre as referências, mas está bastante presente em Raízes do Brasil)

Não posso provar cabalmente como isso teria acontecido. Uma possibilidade interessante é lembrar que, na divisão do trabalho da sociedade colonial, o pensamento e a instrução formal (eventualmente também o governo) eram, nos três primeiros séculos, atividades desempenhadas quase exclusivamente por membros do clero católico (principalmente jesuíta), segmento esse que foi também aquele que desenvolveu o maior contato intelectual com os índios - aprenderam a língua geral, verteram-na para dicionários, nela catequizaram os índios. Não poderiam eles, nesse processo, inadvertidamente ter começado a pensar diferente? Isso para não falar de outros contatos, outros caminhos.

A ideia não é que "o brasileiro" "pense como tupi", mas que talvez haja, em meio a diversas forças e impulsos trabalhando pela aproximação ao Uno, à Essência, à Ordem, esses desejos que se deixam expor no discurso bolsonarista, uma pulsação inicialmente imperceptível de movimentos na direção do outro (impulsos condicionados, é verdade, pelos impulsos dominantes, explícitos, mas nem por isso inatuantes) - não a um outro necessariamente compreendido como ente substantivo discernível, mas como qualquer coisa que não eu, qualquer pensamento que não este. Esse mesmo movimento já está inclusive presente na variante utópica do discurso bolsonarista, no qual Bolsonaro se apresenta como (a única) alternativa radical a tudo isso que está aí. Essa interpretação da realidade talvez esteja até construída, diferentemente do que pode parecer olhando para uma exterioridade normalmente narcísica, como projeção para o todo social de uma percepção negativa do eu. Em Raízes do Brasil, isso aparece de maneira trágica, como incapacidade de pensar por si mesmo - mas veja que há um mecanismo estranho, de avidez pelo pensamento do outro, mas de incorporação dele numa forma enrijecida. Isso talvez tenha a ver com o componente português da mistura - componente, novamente, morfológico.

Bem, acho que já escrevi bastante para uma primeira resposta (será que respondi a alguma coisa?), ainda por cima em se tratando de um texto tão curto. Me despeço então agradecendo pela oportunidade de pensar junto e perguntando, além do que você pensa da minha réplica, se alguma parte dela (e qual) mereceria ser incluída numa possível revisão do texto. Eu imagino que alguma, mas tenho medo de desfigurá-lo (queria que o texto, inicialmente pensado como uma carta, continuasse pequeno).

Um grande abraço,

André

PS: Achei muito oportunas suas indicações do Clastres, que é um autor que gostaria de ler quando tiver tempo (agora não tenho mesmo). O título de um dos textos me lembrou um que li recentemente, do Emmanuel Lévinas, chamado "Do uno ao outro". Lévinas propõe um pensamento que se subtraia à questão do Ser e do Uno (pensar o humano para além do Uno da intenção, cuja expressão filosófica estaria na questão do Ser) - para tanto, ele acredita haver precedentes na tradição rabínica de interpretação do Outro como de importância equivalente ao si-mesmo. Nessa tradição, a sagrada escritura não diz "ama teu próximo como a ti mesmo" (o si-mesmo aqui mantendo uma precedência implícita sobre o próximo, cuja importância é puramente derivada do fato de eu amar a mim mesmo), mas "ama ao próximo, ele é como Tu" (Tu e Eu somos iguais), e o homem paradigmático não é o Ulisses do retorno a Ítaca (a si mesmo), mas o Abraão que deixa tudo para trás em direção à terra prometida (outro lugar, daí que a de Lévinas seja uma filosofia que recusa, além da questão de Si, a do meu lugar, por oposição ao lugar que não é ainda). Caso ele esteja certo, o Ocidente não seria tão radicalmente estranho à questão do Outro, como imagino que Clastres parece acreditar; de todo modo não, é essa a questão que estamos discutindo.

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História de Lince (Companhia das Letras, 1993), de Claude Lévi-Strauss

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"Perspectival Anthropology and the Method of Controlled Equivocation", artigo de Eduardo Viveiros de Castro publicado em 2004 no Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America.

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André Martins é formado em Relações Internacionais pela PUC-Rio e mestre em História pela UFF.

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andrejmartins@gmail.com

Bibliografia (obras que, citadas ou não, alimentaram argumentos desenvolvidos neste breve texto; a relação se dá sem prejuízo daquelas que não terão ocorrido ao autor)

“O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem”, ensaio de Eduardo Viveiros de Castro constante de seu A inconstância da alma selvagem, de onde é extraída a citação de Vieira (Cosac Naify, 2003)

Tristes trópicos (Companhia das Letras, 1995) e O cru e o cozido (Cosac Naify, 2010), de Claude Lévi-Strauss; deste último, em especial, a “Abertura”.

“Subjective culture”, tradução inglesa do ensaio “Vom Wesen der Kultur” de Georg Simmel, constante da coletânea On individuality and Social Forms (University of Chicago Press, 1971)

A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, de Max Weber (Companhia das Letras, 2004)

Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (Companhia das Letras, 1995)

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Assunto: Sobre o texto "A cabeça dos outros e outras cabeças"
Hugo Salustiano
21 de nov de 2018 23:27

para andrejmartins
 


E aí, André!

Tudo certo?

Me chamo Hugo e os patrões me escalaram pra editar seu texto pra Capivara de dezembro.

Vamos lá.

Gostei da relação, apesar de arriscada.

Se bem entendi, seu texto busca dar uma luz otimista sobre o que interpretamos como a reprodução mecânica feita pelos eleitores do Bolsonaro de ideias recebidas via redes sociais. Esse amor pela ideia alheia ou renúncia "à mais pedestre epistemologia" poderia ser indício e esperança de que herdamos, por algum "desvão" da história, algo da abertura ao Outro colocada pelo pensamento ameríndio. E aí está a potência de mudança.

Queria colocar algumas questões pra gente debater o texto.

Eis o que eu penso: apesar do contato com povos ameríndios, o caso brasileiro seria bem mais próximo do modo ocidental de pensar, e com isso quero ressaltar o "amor ao Um" que alguns autores falam (dê uma olhada, se já não viu, no artigo "Liberdade, Mau Encontro, Inominável" do Pierre Clastres, no livro Arqueologia da Violência; ou no "Do um sem o múltiplo", do mesmo autor, no livro Sociedade contra o Estado). No artigo do Viveiros de Castro que você cita, acho que isso aparece, de certa forma, quando ele fala da nossa vivência da cultura como um sistema religioso ("O mármore e a murta", p. 191, na edição da Cosac Naify de Inconstância da Alma Selvagem).

Em contraponto a isso, o binômio obedecer-dominar parece ausente do pensamento ameríndio. Diz o Viveiros de Castro na subseção "Do que custa a crer" do mesmo artigo (p. 216-219):

"Aqui está: os selvagens não creem em nada porque não adoram nada. E não adoram nada, no fim das contas, porque obedecem a ninguém. A ausência de poder centralizado não dificultava apenas logisticamente a conversão [...]; ela a dificultava, acima de tudo, logicamente. Os brasis não podiam adorar e servir a um Deus soberano porque não tinham soberanos nem serviam a alguém. Sua inconstância decorria, portanto, da ausência de sujeição [...] Crer é obedecer [...]".

E mais adiante:

"Assim se vê que as três ausências constitutivas do gentio brasileiro estavam causalmente encadeadas: não tinham fé porque não tinham lei, não tinham lei porque não tinham rei [...] A verdadeira crença pressupõe a submissão regular à regra, e esta supõe o exercício da coerção por um soberano. Porque não tinham rei, acreditavam nos padres; pela mesma (des)razão, porque não o tinham, desacreditavam".

Me parece que crer e obedecer foi um fator determinante nessa eleição. Mais do que isso: de ouvir apenas o mesmo e de aniquilar o outro. O discurso à la Bolsonaro é marcado pelo problema da identidade ("quem é o Brasil de verdade?"), pela subsunção a esse Um imenso que é a Nação Brasileira e pela aniquilação do estrangeiro. Por outro lado, o fundamento da vida social tupinambá não é a expulsão do outro pra constituir um todo igual a si mesmo, mas a ingestão (que chega a ser literal no canibalismo) desse outro que conduzirá inevitavelmente à ingestão de si pelo outro por causa do movimento infinito da vingança. E quando o canibalismo sai de cena, entram em funcionamento outros dispositivos de devir outro, como no caso do profetismo tupi-guarani.

O P. Clastres é bem mais pessimista do que você: supondo como verdade a nossa tara irresistível por obedecer a uma ordenzinha que seja, seria essa a linha decisiva e irreversível que nos separaria dos modos ameríndios de existência. Não gostaria que isso fosse verdade. Mas por esses motivos acima, e apesar das ressalvas que você faz, não posso deixar de hesitar quando vejo a simetria que você traça entre o modo luso-brasileiro e ameríndio de "reprodução da ideia alheia". Porque me parece que em um vem embutido a tara pela obediência, enquanto o outro não a traz de forma clara. Então a questão seria: como fazer pra que a gente, tão crentes, parasse um pouco de acreditar?

É por isso que eu quero saber: de que forma você diria que o homem cordial é meio tupi? De que forma o amor dele pela ideia do outro embute alguma forma de desobediência?

Abração!

​

​

"Do uno ao outro", no livro Entre nós. Ensaios sobre a alteridade (Vozes, 2005)

Hugo Salustiano
24 de nov de 2018 12:26

para André

Oi, André!

Desculpe a demora para responder.

Uma dica pro e-mail acidentalmente enviado, se você já não souber: se você for em ‘Configurações’ > ‘Geral’ no Gmail, vai ver que ali tem uma opção “Cancelar envio”. Se você ativar, vai ter uns segundos pra desfazer o envio de e-mails que mandar por acidente. É bem útil pra casos graves, rs.

Sobre a réplica: penso que no caso do Bolsonaro a proposta seria menos de um descentramento de si do que uma espécie de “re-centramento”. Não seria exatamente qualquer coisa que não eu, mas qualquer coisa que não isso que me obrigam a aceitar: tudo isso que está aí (esse Outro que toma diversas formas: comunistas, petistas, gayzistas, imigrantes etc.), que é uma falsidade -- como se fossem roupas colocadas à força -- e que impede a realização desse povo brasileiro enquanto nação. Ele não apela a um vir-a-ser, mas sim ao que as pessoas supostamente já são em essência.

Por isso, o movimento do discurso do Bolsonaro é de subtração, e não de assimilação e transformação como no caso ameríndio. O movimento é na direção de outra coisa que no fim das contas aponta para a primazia e precedência de si. Em contraponto, muitas culturas ameríndias são marcadas pela noção de que o conhecimento que a renova é sempre proveniente do exterior (por exemplo, os parakanã aprendem cantos de inimigos que aparecem no sonho, como escreve o Carlos Fausto em “Inimigos fiéis”) -- é na relação com o outro que se dá a existência. Será que o mecanismo que o Bolsonaro ativa é mesmo o da avidez pelo outro semelhante ao caso indígena? Aliás, será que é próximo mesmo do caso do homem cordial?

Talvez a gente esteja diante de algo semelhante a um equívoco da forma que o Viveiros de Castro define. Apesar de aparentemente estarmos falando de coisas próximas (no caso, um movimento em direção ao outro), elas seriam, na verdade, radicalmente diferentes. A questão então seria esclarecer quais seriam essas diferenças e desdobrar as suas implicações.

Porém, eu fico pensando, de fato, o quanto se pode sair incólume de um contato de séculos como esse entre ocidente e indígenas. Um fator determinante é esse que você já levantou: não é um contato qualquer, mas uma relação colonial, com toda a violência brutal que implica. Daí, talvez, persistirem até hoje os mal-entendidos, mesmo para não-indígenas que vivam muito próximos e aprendam idiomas indígenas. Traduções de termos guardam uma série de equívocos que são dados de barato. Por exemplo, o significado de quando um guarani diz, em português, que vai rezar pra Deus.

Já ouvi dizer que o Lévi-Strauss, de tanto estudar povos ameríndios, teria começado a pensar de modo cada vez mais próximo ao deles. Aliás, o Lévi-Strauss, no “História de Lince”, também aponta que a “descoberta do Novo Mundo” teria tido um efeito no pensamento de Montaigne. E os dois eram franceses… Será que nossa avidez pela ideia do outro (na forma da negação de si) ou avidez por outra coisa (na forma da negação de tudo que está aí) é um obstáculo ou uma via que facilita que a gente vire o jogo? É algo que vai na direção da assimilação do outro e transformação ao modo ameríndio? Ou se trata de um equívoco, por trás do qual existe uma descontinuidade abissal entre duas formas distintas de se relacionar com a alteridade?

Não li o Emmanuel Lévinas e gostei muito da indicação. Vou procurar pra ler. É bom dar uma matizada no que diz o Pierre Clastres e pensar no que mais pode ser o ocidente. Se essas grandes sínteses já são complicadas, é ainda mais difícil mobilizá-las pra falar do contexto específico do Brasil. É muito importante a gente explicitar as diferenças entre diferentes sistemas de pensamento. Mas se a gente pensar as coisas como estanques estamos fritos.

Acho o seu texto bom para pensar. Pelos motivos que falei, acho que não concordo com a tese, mas você tem vários pontos para defendê-la. Se for para incorporar algo, seria bom o parágrafo da sua réplica que começa com “A ideia não é que ‘o brasileiro’ ‘pense como tupi’...”. Acho importante deixar claro o paralelo de que a avidez da ideia do outro toma a forma, no discurso do Bolsonaro, de ser contra “tudo isso que está aí”. Se entendi bem, o amor não é pela incorporação das ideias do Bolsonaro, mas pela recusa do que está aí por um amor difuso (e muito rígido) pelo que é outro.

Outra edição que eu sugiro, essa mais pontual, é na metáfora no final. Me pareceu que você colocou o fascismo pelos dois lados: como água que rega a planta (e por isso as ideias que crescem seriam fascistas) e pela mão do jardineiro (que impede que novas ideias não-fascistas vicejem). É isso mesmo? Pela construção, eu esperava que fosse ou uma coisa ou outra: se a gente levantar a mão do jardineiro mas continuar regando com a água abjeta do fascismo, as ideias que vão vicejar continuarão a ser fascistas. Faz sentido?

Enfim, já me alonguei bastante nessa resposta. Gostei bastante de comentar o seu texto, e acho que esses são os apontamentos que eu tinha para fazer.

Grande abraço e até mais!

André M
24 de nov de 2018 14:13

para Hugo

Hugo,

Sua tréplica solicita, por conta das questões levantadas, uma... tréplica?, quadrúplica?, tétrica?, enfim, uma reflexão a mais, da minha parte - coisa que não farei nesta mensagem. Mas peço que entenda que, se não responder nos próximos dias, não é porque tenha dado o assunto por terminado. Antecipo, de todo modo, que as suas sugestões de edição do texto me pareceram bastante pertinentes.

Gostaria apenas de comentar uma coisa interessante sobre essa nossa conversa: inicialmente, quando o Antonio me disse, ao propor que você editorasse o texto, que você estava fazendo mestrado em Antropologia, fiquei com medo de uma crítica excessivamente "disciplinadora" do texto (denunciando apropriações levianas do pensamento antropológico, ou algo assim). É uma experiência que tive algumas vezes na minha trajetória acadêmica, até porque mudei de área da graduação para a pós. Digo que fiquei com medo porque mesmo que muitas vezes esse tipo de correção tenha apresentado oportunidades de aprendizado, em muitos outros casos, nem tanto -- o caso era mais de preservação de vacas sagradas disciplinares ou mesmo de falta de imaginação científica mesmo. Até onde posso ver, nosso diálogo não vestiu a carapuça das rixas disciplinares.

Me perdoe a intrusão, mas, talvez inspirado por essa percepção, que tive com sua primeira resposta, fui ver seu Lattes [é um vício meu, sou apresentado às pessoas e, quando tem, vou ver o Lattes] e vi que você é, como eu, um internacionalista desgarrado. Não sei o que o terá levado a continuar a formação acadêmica em outra disciplina nem qual a sua opinião sobre RI como área de conhecimento. Mas acho mesmo que RI tem essa coisa engraçada: eu, pelo menos, fui apresentado a ao conhecimento acadêmico numa forma de ensino e pesquisa cujo ecletismo teórico [que em alguns casos dá dignidade científica a reformulações mais ou menos elaboradas do que já é ideia corrente] me legou, se não conteúdos substantivos [substantivos ou não, praticamente não frequento mais a bibliografia que vim a conhecer no curso], um estilo de pensamento meio... tupi? Talvez tupi seja um exagero, mas acho que somos estimulados a sempre procurar amparo em outros saberes, a um certo devir-outro teórico que no fim das contas é uma vantagem [há também as desvantagens] sobre os saberes mais consolidados - claro que as outras disciplinas dialogam entre si, mas costuma existir, digamos, um certo repertório do bom-tom bastante estabelecido. Ou então posso estar apenas reproduzindo a ideologia (o mito?) disciplinar e mostrando ser, afinal, um bom filho dessa disciplina esquisita. Vai saber.

Como eu disse, a resposta às questões substantivas levantadas por você vai ficar para outra hora.

Um abraço,

André

 

* * * * *

 

André M

5 de dez de 2018 15:48

Para Hugo

 

Hugo,

 

Faço algumas rápidas considerações finais sobre seu último email.

 

[1] O primeiro ponto que você levanta parece convincente. Há mesmo sinais de que o que estamos testemunhando é um impulso de subtração e centralização da vida, um retorno utópico a uma "idade de ouro" que, justamente, a maior parte das pessoas não conheceu ou conheceu mal -- falo pensando no comentário do presidente eleito de que o Brasil deve voltar a ser o que era cinquenta anos atrás.

 

Tenho dificuldade de formular uma resposta a esse seu argumento, mesmo porque hoje, infelizmente, não estou com a mesma disposição de pensamento que permitiu que o texto saísse como saiu. Mas, como você mesmo diz, esse é o discurso do Bolsonaro, é a visão de mundo da qual ele e uma parte expressiva da sociedade partilham há muito tempo, e tem um repertório de ideias básicas bastante sólido e coerente (não falo necessariamente de uma coerência lógica, mas de uma rigidez extremamente eficaz dos encadeamentos internos desse estilo de pensamento em não permitir uma abertura para outras possibilidades). Mas isso é uma forma de pensar que capturou a maior parte do país -- desconfio muito desse mantra de que "só uma parte dos eleitores de Bolsonaro pensa como ele", eu acho que cresceu muito o número dos que pensam como ele. Aliás, diferentemente da sua leitura do meu texto, na minha (não quero com isso descartar a sua, talvez o texto dê mesmo essa ideia), eu acho que as pessoas amam o Bolsonaro. Muitas de forma envergonhada, mas indisfarçável. Agora, por quanto tempo? Esse é, eu acho, meu ponto. Será que essa brincadeira, que parece tão divertida, vai continuar entusiasmando as pessoas? Porque esse é muitas vezes o discurso -- o de que tudo que desagrada nele não passa de brincadeiras, que são "vestidas" pelos eleitores como fantasias de carnaval. Será que esse carnaval pode durar o ano inteiro? Será que ele vai lançar suas raízes em todas essas cabeças, chegando a constituir o núcleo duro do pensar? Acho que há esse perigo, mas me parece que há um amplo espaço para tentar virar o jogo.

 

[2] Vou tentar incorporar sua primeira sugestão de edição. Já sobre a metáfora da água, prefiro manter, porque o jardineiro é quem rega. Mas talvez esteja um pouco confuso mesmo...

 

Bom, acho que é isso!

 

Um grande abraço,

 

André âˆŽ 

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